5 de maio de 2016

QUE IMPORTA A FÚRIA DO MAR

"Maria Silvestre, querida irmã:
Peço desculpa por esta carta que não te escrevo.
A caneta resvala-me dos dedos, escorrega-me a mão sobre o papel e deixo um borrão seguido de um traço sem firmeza, nem rota nem paradeiro. Saberás tu ler nas pregas desta linha incerta? Nesta nódoa de mosca esmagada, que já não voa e, ainda assim, arrasta o seu último fiozinho de vida, à deriva, largando esta desprezível impressão, hesitante e perplexa prova da sua vil existência?
Maria Silvestre, querida irmã, não te escrevo a dizer que já não volto a voar.
Encontro-me rebentado por dentro, todo eu sou chão, pregado a ele, neste colchão pantanoso feito de uma pasta de limos que já não vêm água há tanto tempo que nem atinam na consistência, ora acham que são capim seco, ora se tomam pelas giestas bravias da nossa infância. Às vezes, penso que é ela que me sustém, a água, traz-me a clemência de me manter à superfície. E vogo nesta jangada de limos apodrecidos, sobre as rugas das ondas num mar sem fúria"




(Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro - 6 de Maio de 2016 - 18 horas)

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