26 de maio de 2020

Ruben A. e Ferreira de Castro

Passam hoje cem anos sobre o nascimento de Ruben A., nome literário de Ruben Andresen Leitão, com que assinava a obra historiográfica, incidindo no século XIX, em especial na figura e no reinado de D. Pedro V. Num depoimento publicado no
, Diário Popular Popular, em 7 de Abril de 1966 -- quando se assinalava o cinquentenário da publicação do seu primeiro livro, Criminoso por Ambição -- o romancista de A Torre da Barbela traçou um eloquente retrato moral do escritor, nascido há 122 anos, completados anteontem, 24: «[…] nos raros encontros que tivemos -- eu fiquei com um pedaço da sua alma agarrada à minha fraca humanidade. / Tem a estranha qualidade em escritores portugueses -- que é a de saber admirar, mostrar ao mundo do dia a dia -- que a vida não é apenas um alguidar de lacraus onde todos se trincam sadicamente.» A esta qualidade moral, Ruben juntou outra: o exemplo da rectidão: «[…] por detrás dessas linhas [os seus romances] desenha-se uma alma fina, silhueta perfeita do homem que estimula, do ser que combate com a dignidade de quem na praça pública só tem ou segue uma conduta.»

25 de maio de 2020

EPHEMERIDES

25 DE MAIO DE 1265 (755 ANOS)

DANTE ALIGHIERI




"Quanto maior é a sede, maior é o prazer em satisfazê-la"

o mar

«Escuto o mar no seu vasto marulhar na madrugada. Olho-o intensamente na sensação fria e desértica de um naufrágio. No espaço do céu há estrelas ainda acesas.» Vergílio Ferreira, Até ao Fim, 8.ª ed., Lisboa, Bertrand Editora, 2001, p. 102.

CLUBE DE LEITURA DO MUSEU FERREIRA DE CASTRO

O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA



Ainda só cheguei ao capítulo IV e estou completamente rendido. É uma obra-prima!O capítulo III é de loucos; uma luta de (dissimulados) titãs em que cada golpe é melhor que o anterior.Obra magistral! 





"Ao subir para bordo Gabriel Syme virou-se para o embasbacado Gregory:
- Você cumpriu a sua palavra. É um homem honrado e eu agradeço-lhe. Cumpriu-a até ao mais pequeno pormenor. Houve uma coisa em especial que me prometeu logo ao princípio disto, e que de facto me proporcionou.
- Que quer dizer? - gritou o confuso Gregory. - Que lhe prometi eu?
- Uma noite muito divertida - respondeu Syme, e fez a continência militar com a bengala, enquanto o barco se afastava."

Boas leituras!

FF
  

21 de maio de 2020

a morte de uma árvore

«O machado voltou a insistir. O tronco foi-se inclinando, estalando pouco a pouco, ainda hesitante em obedecer ao desígnio dos seus algozes. E, quando, enfim, se decidiu, os galhos dos vizinhos a que se amparava e com brutalidade ia partindo, lançaram protestos mais ruidosos e aflitos do que ele próprio, que a esse apoio forçado ficou devendo o poder morrer abafadamente, como se tivesse rolado, de degrau em degrau, até à cova.» Ferreira de Castro, O Instinto Supremo [1968], 6.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1988, p.22.

12 de maio de 2020

EPHEMERIDES

12 DE MAIO DE 1840 (180 ANOS)

ALPHONSE DAUDET







"Atingir a dúvida da dúvida é o começo da certeza"

CORTE NA ALDEIA

Eu sei: um livro é um livro e, nada melhor que juntar à leitura, o toque, o revirar, o espreitar capas e badanas, o descobrir referências antes do texto, o cheiro, o aspeto de velho ou jovem...
E quando já não há?! Abdico de ler, ou aplico o rifão "do mal o menos"?
Prefiro a muleta à imobilização.
É por isso que, se quer matar o apetite que o confrade Manuel Nunes nos abriu sobre a Corte na Aldeia, e já não encontra a escrita do Francisco Rodrigues Lobo, impressa no papel, lhe deixo o seguinte caminho;

https://bibliotronicaportuguesa.pt/livronicos-na-internet/
Depois é só buscar o autor, por ordem alfabética, e ele lá estará para lhe oferecer:
Divirta-se.
J. A. Marcos Serra

5 de maio de 2020

DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA

Elogio da língua portuguesa

Francisco Rodrigues Lobo, Corte na aldeia. Lisboa: Edições Vercial, 2010

DIÁLOGO I


E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por
grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns
querem provar que é essa; antes é branda para deleitar,
grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para
pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias
mais importantes da prática e escritura. Para falar é
engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com
um certo sentimento que favorece a música; para pregar é
substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e
as sentenças; para cartas nem tem infinita cópia que dane,
nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão
florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor
das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da
boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com
veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e
assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a
pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade
da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da
Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as
vulgares, em fé de sua antiguidade. E se à língua Hebreia,
pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.

Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia (1619)

3 de maio de 2020

EPHEMERIDES

3 DE MAIO DE 1540 (480 ANOS)

FREI AGOSTINHO DA CRUZ




A NOSSA SENHORA DA ARRÁBIDA

Aqui, Senhora minha, onde soía
Cantar na minha leve mocidade
O muito que de vossa saudade
Desejei de acender nesta alma fria:

Aqui torno outra vez, Virgem Maria
Desenganado já, mais de verdade,
Pois me mostrou mundana falsidade,
Que a lágrimas comprei quem me vendia.

Conselham-me tão claros desenganos
Que comece de novo nova vida
Nesta Serra deserta, alta e fragosa;

Mas são conselhos vãos, leves, humanos,
Que vós nunca quisestes ser servida,
Senão por por amor, Virgem fermosa.


1 de maio de 2020

leitura em tempo de Covid-10 - «S. João d'Arga", de Ruben A.

Um texto muito sensorial e de grande mestria, como é apanágio do autor, cujo centenário do nascimento se celebra este mês (26 de Maio).

S. João d'Arga -- 28 de Agosto.

Há anos tinha lá uma promessa. Mais cedo, mais tarde, obrigava-me a meter pela serra acima de avanço até àqueles penhascos, irmãos do outro mundo onde pousou no encanto a capela de S. João. A festa em honra do santo de Arga é uma coisa única no país -- e é assim por muitas e variadas razões.
Este ano aventurei-me à minha promessa. Preparei o breviário. Um dia passado na montanha, noite alerta, regresso pela madrugada.
Vai-se de automóvel até S. Lourenço da Montaria, depois à pata. Daí à capela, na arga de S. João, são bem umas três horas de subidas em caminho -- é uma aventura paleolítica onde todos os minhotos vão levar o sal das promessas, ou o amor dos corações. Estão na Idade Média. Todos os anos o 28 de Agosto é corrido a carpir e a borgar naquelas alturas. Há missa procissão joelhão foguetório festeiros mordomos cidra barracas de comes comunhão vinho a rodos sermão em grande estilo. É uma romaria servida em pele e osso, sem ingredientes de V. Ex.ª ou fidalguias de Dom. Do Alto Minho vai tudo -- saem de casa à noitinha para lá estarem de madrugada. Para muitos são nove horas a pé por mau caminho, se pensarmos que a romaria é bem popular na margem esquerda do Lima -- em Mazarefes, Deocriste, Subportela, Vila Franca, Barroselas e nos contrafortes da serra de Arga, na parte ao norte que vai de Caminha a Perdes de Coura. Pedra a seguir a pedra.
À saída de S. Lourenço é uma subida enviesada entre pinheiros cabeça marrada aos pés, romeiros vestidos de animais, patas são quatro, sobe-se de gatas, voltar atrás é perder o equilíbrio. A cada aberta da Natureza chapa-se um clarão entre dois cocurutos de pinheiro; na sombra, uma mulher encostada ao pipote oferece cidra. Os sequiosos bebem. A cidra fervida, fresca, amacia as goelas emperradas. Sobe-se mais, ainda completamente embrulhado em pinheiros, raro se descortina um palmo à rota de estibordo ou bombordo, é tudo caruma, mato e uma fileira de formigas humana: para cima e para baixo, ritmo silencioso de cruzar padre-nosso de olhos magros, rezando mais ave-marias. O extraordinário é que está sempre gente a subir e a descer qualquer que seja a hora, desde o dia 28 pela madrugada do dia 29 já noite fora. Sobe-se sempre, parece uma humanidade transportada em  bandos de funicular nacional. O momento está a chegar, fora dessas montanhas de pinheiro espesso começa o planalto de pedras, pedras desde o princípio do mundo, pedras poemas, sabendo que são pedras, pedras sim. -- A luz está cinzenta, se estivesse céu limpo era um esfolar de corpos correndo riachos de suor. Chega-se ao fim do planalto e vê-se a Ribeira Lima, o alto da cidade de Viana, descortina-se Âncora com o pinhal da Gelfa de sentinela alerta. É um espectáculo cinzento ao pé, quase verde nos longes. Começa agora nova subida por melhor caminho, a cabeça vai baixa, o pensamento desloca-se para S. João de Arga -- as formigas sobem e descem em loucura penitente --, o nosso rancho aumenta-se de uma Tia  de S. Salvador da Torre e de três pequenas do Orbacém acompanhadas do maior patusco das redondezas. Sobe-se, aqui uma fonte. De água ficamos satisfeitos como diz a boa da Tia, que traz promessa anual ao santo -- e descalça é que é -- mostrar ao Santo que se tem um respeito descalçado, nada de familiaridades. O Santo é bom para os aleijões, pernas, cabeças, costelas partidas de bichos e de homens -- é Santo grande de efeitos milagrosos osteológicos. Melhor que todos os endireitas da região e mais sábio de que o da Esperança. Cá vamos subindo, sempre subindo, subindo de cabeça baixa olhando para esta pré-história tal qual. Chegamos finalmente ao alto depois de lutas e contracurvas perigosas sem resguardos. Todo o trânsito se respeita, é um trânsito religioso, penitente, de boa promessa. Cheiro o ar, abro mais as narinas viradas ao vento predominante, está leve e sem mais nada, é um ar cheio de ar onde o puro se encontra com o mais puro, vejo transparências de beliscaduras a respirarem-se melhor. O ar está o que é, e a montanha agasalha-se de mantos diáfanos de ar. Tudo é pureza transparente, pedras de musgo, pedras limpas, pedras cor de sardanisca.
Passam formigas de cestos brancos à cabeça -- merendas de frango e cabrito. Sobe-se mais, cá vai o nosso rancho acariciado pelo transporte colectivo do 29. É o 29 quem leva parte da carga. É um génio o 29. Coveiro enterrador da Junta de Freguesia de Carreço com falta de mortos lança mão dos vivos. Faz tudo, é um destes seres privilegiados como só existem em Portugal. Tem duas vacas, quatro borregas um cão e três gatos para comerem os ratos que se alimentam no curral. Trabalha como mouro desde a noite antes do dia até à noite depois do dia. Faz tudo, deita a mão a tudo, atende às crias, cuida das vacas paridas, oferece assistência. Quando tira o sargaço do mar, ninguém lhe leva a palma. No entanto, dizem os entendidos, a enterrar é que ele é mestre, faz com uma arte e rapidez que a freguesia antes de orar os responsos já está com a alma encomendada para o próximo. Venha outro morto se quer aproveitar, ele está com as mãos na massa. É das melhores almas que se habitam no Norte de Portugal. Não conheço ninguém que trabalha a enxada, o redenho e a pá dos mortos com tanta perícia, dureza e seriedade. Pedra acarinhando pedra.

Puxa mais para cima! Já levamos duas horas bem andadas de subida íngreme. Dá-me a impressão de que tenho o sangue todo nos pés. -- À volta de nós a serra de rochas, pedras, pedras a dormitar, não chegam a senti a comichão que lhe fazem estas formigas escarafunchosas. Passam mais ranchos -- estes minhotos são como gatos de sete foles. Trabalham sempre, quase não dormem no Verão e borgueiam quando os santos fazem anos. Vão a dançar e a cantar como quem chupa caramelo. Eu, de língua de fora, pareço um perdigueiro depois de ter deixado as perdizes voar para outra fraga, lá nos fundos. Ainda se sobe mais, este caminho não é para funcionários públicos nem para comerciantes estabelecidos em casas de bancos ou de latoaria, menos para ministros -- é um caminho de poetas, caminhos de pedras. Como esta gente é poeta! -- Há uma alegria própria no cantar, aberta, convidativa ao amor, granito polido pelos versos. Continua tudo cinzento, excepto as formigas e uns verdes humidados por nova fonte. Pedregulhos ancestrais escondem o resto das formigas e outros mistérios mais íntimos de promessa. A Tia conta a tragédia a toda a gente, transporta tragédia de arromba -- e às carradas. Tinha três filhos e já não tem nenhum -- fiquei com o gato, e vendo sardinha, pronto. A vida resumira-se para ela. Acabou. Cá vai connosco. Há uma mulher que passa e lhe pergunta se eu sou filho dela -- tem a sua cara, isso é que é -- e ela de lágrimas nos olhos responde: -- Os meus já lá estão -- eu não conheço este filho. «-- Olhe que ele tem as suas sobrancelhas! E a penca é por uma peninha».
«Tatá. Adeus cá vamos, o santo está à nossa espera e eu assim não me arrumo». Outro planalto, outra subida mais estreita, a serra, mais aberto o céu e a língua mais saída, mais baixa. Ali não se depara com dez reis de coisa: só o isolamento. Andamos, caminhamos sempre em frente de batida rápida no córrego semidiabo, semideus. Tudo no mesmo ritmo, tudo a palmear. Chegámos ao alto, alto que fica encostado ao céu -- céu e as narinas abriram-se entusiasmadas pelo bufar. Tudo virgem. Agora, daqui ao S. João, é uma boa meia hora a descer e lá daquele fundo já se vê a capela. Assim foi, passados cinco ou dez minutos, pela garganta do desfiladeiro, à direita, a meia altura, João de Arga estava em festa. As primeiras árvores da montanha -- oliveiras, carvalhos de uns quinhentos anos e uma grande muralha que faz pensar que a capela deve estar entremuros. À nossa volta mais formigas, no ar o fumo dos petardos a anunciarem a saída da procissão. Pedras só pedras.
A genuína promessa é descer de joelhos, desde esta primeira rocha de onde se vê a capela, até lá baixo ao altar onde está S. João. São oito a dez horas de joelhos em sangue. Passamos por várias promessas em funda penitência, de pernas e joelhos massacrados. É de meter medo o poder de sacrifício da fé. Se houvesse caminho aberto, ainda era fácil, mas assim, aos pequenos saltos de joelhos, é já do outro mundo. Avançamos de facilidade, a descida sobre S. João é bela com o regato a espelhar e o rio Minho de Santa Tecla e tudo mais ao norte. É supino. Meto a língua para dentro. Começo a dar ao rabo. Contente. A minha promessa estava cumprida, era só entrar na capela, agradecer a S. João.
Pusemos arraial na encosta, pedra ao pé de pedra. Lá fomos entre o formigueiro. A capela é mesmo viva pelas coisas de pedra colorida e pela situação escondida do altar-mor. Tem uma estátua do Santo Miguel a cutilar o Senhor Diabo que é uma maravilha. Todos entre Lima e Minho têm respeito ao Senhor Diabo, e os romeiros levam esmola ao Senhor Diabo para ele estar quietinho. Nada de obras do Diabo! O Senhor Diabo merece toda a consideração. Deitei lá umas cinco coroas para não ter nada com as iras e más disposições do Senhor Diabo.
Por cima da entrada da capela-mor há um baixo-relevo policromado representando o baptismo de S. João. De maravilha a igreja está em festa com duas bandas de música, os Atrevidos de Freamunde e a Banda Marcial do Couto da Labrega. À volta, um arame para separar os penitentes dos que já cumpriram as promessas; 379 voltas de joelhos à capela, num murmurar baixo as rezas quentes do rosário, já a contas no último terço. O padre fala, a banda toca, uns dançam, outros bebem, outros comem, outros rezam, outros dormem, outros gritam -- é um quadro estranhíssimo quase nas raias do brueghelesco. Sinto fome, uma fome viva com cheiros de salpicão a entrar nas goelas. Abanco na ravina, inclino-me a baixa o olhar sobre o rio e no espreito de uma luz quase cheia, devoro a carcaça de centeio. Rasgo a dentuça ao longo das cavidades do chouriço da Riba de Âncora, e enterro o gasganete num quartilho de branco que me chama a confessar os pecados. Os da carne são todos iguais, os cá da cachimónia é que variam de temperamento para temperamento. O que é preciso é ser-se grande perante Deus, dizia na velha capela das Amoreiras  um padre chato e resmungão que ao mundo deixou esta bela frase; -- Grande perante Deus! --, neste momento aproximo-me divinamente. Atrombo mais chego à verdade da gula e paro, sinto vaidades, devaneios a pairar ao encontro de outrora. Como se mexem os meus petardos alucinados pela crueldade do sofrimento espiritual. Não há dessas coisas em nossa terra, mais vinho, menos comida, mais pedras, é o que há juntamente com umas rezas bem a propósito para os Santos milagreiros. O que é preciso é ser-se grande perante Deus!
O dia encolhe-se, limpa-se a noite. As estrelas pirilampam-se depois do luar, as fogueiras do arraial significam mistério. Devia ser assim no tempo dos santos medievais -- estamos sentados a admirar a bacanal, na outra ravina da costa, mais aplainada, o espectáculo é de único. Ranchos por toda a parte a cantarem, a dançarem ao som da concertina do conjunto de tocadores. Um alto-falante vomita danças espaçadas, lembra estúpidos de civilização. As bandas tocam mais forte -- bebe-se agora um tinto magnífico e o fogo sobre no alto colorindo uma natureza parda de rocha. O panorama tem majestade. O povo ali não se abana de artimanhas, é um sim de fé e de borga.
Em S. João d'Arga não existem casas -- há a capela, e à volta o quartel, nome pelo qual se chama a uma barraca onde dorme a malta bem empilhada. Mas ninguém dorme -- não se pode dormir, a noite e as fogueiras altas de cada ninho de pedras raro possibilitam sono -- dançam os ranchos, bebem como sequiosos do Nordeste brasileiro, tudo bebe mais vinho e tudo come pela noite fora. Ninguém para -- vejo um embalar puro, sagrado, da gente que espera a primeira missa às cinco da manhã. Depois da comunhão tudo parte à debandada -- formam-se novamente os ranchos e ao nascer do sol o formigueiro movimenta-se de partida. Dá-se lugar a outros que vêm passar o dia 29 junto ao santo. Não durmo, olho para aquele mundo como quem mira uma reserva humana em papel selado. É tosco, primitivo, frascário, mas é puro, é português.

Páginas V, Lisboa, 1967 / Antologia, edição de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, 2009.