31 de dezembro de 2018

Sobre o GERMINAL, de Émile Zola

No Declínio da Mentira, ensaio de O. Wilde contra a arte mimésis do real, explicitando sobremaneira o naturalismo, Zola citado, defende-se a perspectiva de ser o mundo real a inspirar-se nas obras, assumindo o que a arte sugere, cria, sonha, com as correlativas reconfigurações escalares do humano, assim se invertendo a habitual polarização. Adoro Wilde, como Zola, este não se revelando indigente do imaginário, nem pecando por imitatio, ou nem haveria arte na sua obra. Injecta-o na dimensão crucial do Germinal, a da sementeira de novas sociedades a serem relegadas para desejado próximo porvir, o mês Floral - ou outro mais ou menos distante. Vencidos ou não, os mineiros e demais explorados prolongam lutas pelos seus direitos. Expandiram a própria consciência no sofrimento da luta. E não se trata de combate deles, é nosso, da humanidade. Tocam-se ideais  que nos movem e, passo a passo, transformam formas de vida. Hipóteses se formulam, dependentes de condições. Combata-se por estas e avançar-se-á nos direitos do mundo do trabalho -- veja-se a profusão de predicadores no condicional, formas verbais interdependentes das mencionadas condições  proliferantes pela obra. Sem minério como existir ainda hoje? Próteses, TM, medicamentos, pirites, ouro, electricidade, aquecimento, siderurgia, etc, alguns anotados desde que a escrita aparece e lhes referencia custos e comércio. Equacionar um dos trabalhos mais violentos e difíceis no sonho! Eis o meu fio condutor na nossa pluralidade de leituras, outras tantas camadas interpretativas. Estilo não fotográfico, olha-se num certo enquadramento social e ideológico, segundo metas claras. Crítico e lúcido, Zola procede como «um olho da história; torna-se visível algo suspenso por um ciclone de justas lutas comunitárias, frase de um certo Didi Huberman (estropiei o nome?). Todavia é arte literária, romance, ficção sobre excelente observação, aflorando-se súmula de correntes anárquicas e marxistas, abundantes em cisões -- não se requer maior exactidão, como se não critica a ausência descritiva das vítimas de desabamentos ou explosões, cadáveres explodidos. Basta de belo horrível.  Ainda que Étienne venha de fora, provoca a greve com alguma preparação. Não é longa a organização, algo de frágil revelado nele mesmo que, no fim, retorna a Paris, convidado para a área política - então como hoje... 
A substância do romance naturalista em pauta é a de se convocarem outras formas de relações laborais, ainda que elididas de efectivação. Publicada em 1885, após: Manifesto Comunista, 1848, auge da revolução industrial, e já de Liga formada em 1847; Associação Internacional dos Trabalhadores, 1864; a Comuna de paris,  1871. Germinal edita-se um ano depois de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 1884, em Zurik, parcial retoma de anteriores notas de Marx,  em alemão, língua que ignoro ser do conhecimento de Zola. Há  evidentes afinidades temáticas na descrição dos horrores laborais na extracção da hulha, possíveis pelo contexto de então, circulação de ideias e ideólogos por Londres, Paris, etc. Se calhar é de facto Zola, que viveu mais tarde em Londres, quem primeiro retrata a vida dos mineiros carboníferos, em simultaneidade com Engels, sem interconhecimento de obras ao tempo da respectiva escrita. Todavia cruzaram-se as teorias, aliás e também com as teses anarquistas de então,  considerada ampla variedade de linhas... No livro surge um anarquismo insurreccional, contra «limitações» das lutas reivindicativas, virados para a acção, bombas e sabotagens do poder capitalista, na mira de os fins justificarem os meios - tipo Ravachol (troco palatais francesas...?), Netchaev e outros, como os que posteriormente alinham na tchernoe znamia. Bakunin citado não foi tipicamente da frente «terrorista» deste anarquismo revolucionário, definia-se mais pela federação de comunidades, algum anarco-sindicalismo - tinha pertencido à II Internacional, 1864. Kroprotkin, anterior, era mais mutualista. Ambos deixam rasto na greve e subsequentes acções, todavia Suvarin sabotador, alguém que vem do exterior, age de modo a suscitar crítica do leitor, julgo eu.
Gosto muito da 1ª parte, cap 1, cap 3, la mine; 3ª parte , cap 3 chez Maheu; 4ª parte, cap 4, le charbon, maior energia de então e que enriqueceu desmedidamente a burguesia afectada a tal produção, aniquilando os mineiros; 5ª parte, cap 5, a massa do proletariado em raiva descontrolada. Tremendos subterrâneos da vida laboral! Até ao presente sem eficaz solução, vejam-se: Quénia (os Masai, orgulho da causa libertadora africana, exploram em regime selvagem os mais pobres deles e outros), R P do Congo ( idem, à margem de toda a legislação laboral); pouco após graves acidentes há encerramento de minas em Moçambique, no Chile (lembram-se dos homens encerrados entre galerias, um longo processo de salvamento,  houve fecho da extracção uns 2 anos depois...; China, Rússia, Rhur...etc. O hino dos mineiros romenos começa com o verso «Nós que nunca vemos a luz do sol....» e recorde-se o hino dos mineiros de Aljustrel. No regime soviético os mineiros de primeira linha, de broca perfuradora da parede carbonífera, auferiam tanto quanto um reitor de universidade ou um astronauta. Tinham acesso a melhor habitação, a viatura, a mais meses de férias e em bons locais. Todavia, pelos 40 anos preferiam licenciar-se no Instituto de Carvão, passar  a engenheiros com um quinto do salário... Duríssimas condições de trabalho. Se não tivessem os referidos direitos laborais, jamais a URSS teria alcançado o poder económico a que chegou, pese a corrupção (mais de 50 % do carvão mundial).E como teriam construído os tanques cruciais para a vitória sobre os nazis?!
 A ciência ainda não atingiu o ponto de solucionar graves consequências como a antracose, os desabamentos (com rigoroso escombramento pode haver leves movimentos da placa tectónica ou afins, caindo  a «tampa de caixão» da gíria mineira); e prever bolsas de gás atrás da zona em exploração nem sempre é possível - vibrações da broca quente basta para uma explosão. Processos há que diminuem consequências, mas não há total prevenção. Nem sempre a extracção a céu aberto é viável, e a silicose dessas «pedreiras», em cima da antracose, além de ...(reflectir sobre o mármore em Borba...)
Zola, algo determinista, não totalmente fatalista, descreve efeitos da atroz miséria sobre os trabalhadores e familiares, responsabilizando o sistema capitalista, seus governos, a burguesia, o clero, polícia e exércitos (era a III República de Thiers, promotor do massacre da Comuna). E cito (li original francês, outra paginação) « Abrir os horizontes daquelas pessoas....elevá-las ao bem estar e às boas maneiras da burguesia...torná-las patrões» (também a Sophia M Breyner afirmava que todos deveriam ser aristocratas, parece-me que em sentido etimológico). Ora penso que não é de «tornar patrões», como nível, é de pôr fim a tal mentalidade e estilo de vida. Estava-se a dar primeiros passos com certas confusões, penso. Assim, «do fundo da terra germinará uma semente....um exército de homens que viria restabelecer a justiça» (criá-la, não existiu antes, creio... O desfecho «....os homens brotavam, era um exército coberto de carvão, vingador, que germinará lentamente da terra para crescer nas colheitas do século seguinte....»  . Palavra do ser humano...
Se reflectirmos, DESDE QUE A MINERAÇÃO SE FAZ, HÁ MILÉNIOS, é maior o número de mortos em acidentes ou devido a doenças profissionais  que a população mundial do agora. Nessa tragédia nasceu imensa parte da nossa evolução. A ciência derivou mais para armamento e guerras. Adoro a caracterização das minas, onde Zola até trabalhou, como: em evocação da Antiguidade Greco-romana, qual Ogre, Minotauro exigindo filhos da terra, Eríneas vingadoras, Fúrias, Tártaro; numa menção a outra Antiguidade mediterrânica, qual Molok (entre os amorreus divindade, com cabeça de touro ou leão, que exige sacrifício de crianças a serem lançadas ao fogo); numa referência à tradição judaico-cristã qual Sodoma (destacando-se Étienne com um Cristo branco, iluminado ao luar...), trompetas do Apocalipse, «dieu accroupi au fond de son tabernacle», inacessível... Os subterrâneos da mineração, as profundezas da terra, o inferno de sucessivas mitologias, onde diversas religiões  se  destacam. O Advento de uma justiça dos explorados é contraposto à actuação do clero junto da burguesia exploradora, grosso modo... Palavra operária seguindo-se a séculos, a milénios, de sacrifício como animais em redil de gado, escravos ( literatura latina informa que estes valem menos que um cavalo por não poderem ser montados...), que o protagonista pretende libertar no modelo da luta de classes Só isso alterará o que aparenta ser hereditariamente sem fim e os confina, mineiros e familiares, à desumanidade. Cessam as patologias noutras condições de vida. O romance lembra-me filmes de Murnau e Zimmermann, Metrópolis e o Sal da Terra, como tanta obra artística sobre a escravatura e formas mais agudas de exploração humana, por vezes sobre a mineração. Zola descreve as condições das mulheres e das crianças, como aquelas gritam de cabelos ao vento, quais figuras de Delacroix, como elas emasculam o predador da mercearia, Maigrat. O todo num fabuloso estilo descritivo-dramático, de imagens estáticas ou dinâmicas, objectivas e de tal força! Léxico de quem observou bem a povoação mineira.
Um naturalismo formatado por ideal e justiça que passa por regeneração, pelo fogo se transforma, metáfora poderosa, como a figura do cavalo, apresentado como os humanos e estes como os cavalos.
Maria José Carvalho

30 de dezembro de 2018

PARA ACICATAR OS INDECISOS...


CM 1122

A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro.

Radiador vazio,
o meu coração sobreaqueceu.

Desço o vidro e ponho a cabeça de fora
a ver se o vento ma limpa
ou ma leva.

O gelo reluz no asfalto.

O cigarro que lhe atiro:
há instantes apenas acendido
pela tua mão soberana,
provinciana, emigrante.

A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro

e a minha alma um cinzeiro
que não posso despejar.

(Estrada Nacional, Rui Lage, pag. 29)

19 de dezembro de 2018

Imagens de GERMINAL

Para quem se atreva a confrontar a sua imaginação com a dos produtores do filme Germinal, deixo estas ligações. Se "não quiser arriscar... não petiscará", a acreditar no rifão.


13 de dezembro de 2018

os livros de 2018

A Tempestade, de Ferreira de Castro
Café República, de Álvaro Guerra
Donde Viemos - História de Portugal I, de António Borges Coelho
Germinal, de Émile Zola
Ilhéu de Contenda, de Teixeira de Sousa
Insanus, de Carlos Querido
Malditos - Histórias de Homens e Lobos, de Ricardo J. Rodrigues
Maus, de Art Spiegelman
O Romancista Ingénuo e o Sentimental, de Orhan Pamuk
Os Despojos do Dia, de Kazuo Ishiguro
Um Muro no Meio do Caminho, de Julieta Monginho

11 de dezembro de 2018

pedra

«Percebi que há nas pedras almas por resgatar, vidas aprisionadas, clamores de partir o coração. A nudez sem artifícios das pedras obceca-me, cega-me. passei a venerá-las como restos de uma estrela adormecida que guardam a memória da sua antiga incandescência, como vidas suspensas, condenadas à imobilidade.» Carlos Querido, «Estátuas», Insanus, Lisboa, Abysmo, 2017, p. 83.

7 de dezembro de 2018

«A Cega Sanha do Povo»


Ontem, diante do relato dessa jacquerie contemporânea que desfila crua diante de nós, na «Quinta parte» do Germinal (1885), do Zola, veio-me à memória este desenho do anarquista Roberto Nobre, datado de 1935, e que está no Museu de Faro.

4 de dezembro de 2018

da importância do método

«É evidentemente, responsabilidade de todo o mordomo dedicar o máximo cuidado à elaboração do esquema de pessoal. Sabe-se lá quantas desavenças, falsas acusações, despedimentos evitáveis, até mesmo quantas carreiras promissoras abruptamente terminadas, podem ser atribuídos ao desleixo de um mordomo na fase de elaboração de um esquema de pessoal!» Kazuo Ishiguro, Os Despojos do Dia [1989] , trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa, Gradiva, 1991, p. 9.