Elogio da língua portuguesa
Francisco Rodrigues Lobo, Corte na aldeia. Lisboa: Edições Vercial, 2010
DIÁLOGO I
E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por
grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns
querem provar que é essa; antes é branda para deleitar,
grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para
pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias
mais importantes da prática e escritura. Para falar é
engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com
um certo sentimento que favorece a música; para pregar é
substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e
as sentenças; para cartas nem tem infinita cópia que dane,
nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão
florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor
das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da
boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com
veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e
assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a
pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade
da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da
Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as
vulgares, em fé de sua antiguidade. E se à língua Hebreia,
pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.
Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia (1619)
Desta vez, a batalha da formatação foi minha. Que valha pelo conteúdo.
ResponderEliminarJ. A. Marcos Serra
ResponderEliminarGrande retrato! Muito a propósito!
E a última frase, então... Até parece que o R. Lobo estava a ver o descalabro que é o AO90.
Tanta sintonia literária entre nós... e tão dissonantes no AO90... que pecou por ficar tão curto: (J e G / S e Z / multiplicidade do X / S e C ...e outros exemplos). Perfeito? Não. Há alguns aleijões. Melhor que antes? Sem dúvida. Imagine-se a ter de escrever com a ortografia da Notícia de Torto!
EliminarUi, Zé Serra! Não sabia o meu amigo defensor desse aborto!
EliminarJá passaram, quantos anos? 10? 8?, que está oficiosamente em vigor e não há praticamente nenhum dia em que não encontre no D. R., jornais, legendas de filmes e TV, argoladas tão banais e arrepiantes como fato por facto, contato por contacto (esta en vinil, à porta de museus e repartições), pato por pacto, infecioso por infeccioso, egícios por egípcios, etc etc etc. E repare que não são pessoas com a quarta classe (sem desprimor); a maior parte dessa gente é licenciada... É depois, a história da receção, para uniformizar (no Brasil é recepção)...
A que se deve esta balbúrdia?
Há alguma dúvida do nefasto papel do AO90?
E não venha com a história de pharmacia e portuguez. Eu sou pela evolução do idioma, como o são na sua quase totalidade os críticos do AO. O problema é que o que fizeram é ligeiro, irresponsável e criminoso!
Há tanta gente de olhos fechados...
Quando há sentimento não há objetividade e neste caso foi o que aconteceu.
EliminarMas não foi só agora: sempre aconteceu quando houve implementação de novos AO.
Então, caro Confrade, só há calhordas a darem erros ortográficos depois do AO? Antes do AO ninguém dava erros? Se assim foi, recuemos já...
E poderia argumentar com "a pharmacia e o portuguez", sim. E com o "hei-de" e o "hei de", porque já tinha sido assim.
Qual é o ponto exato em que a ortografia (não é a língua) estava boa?
Partilho uma experiência recente.
Estou a rever um livro sobre as Penhas Douradas. O autor é seu acérrimo correlegionário no que se refere ao AO. Este livro tem, porém, um pormenor: tem muitas participações e contributos de várias pessoas (uma delas eu). No que se refere ao AO, uns, saudosistas; outros, convertidos. O autor decidiu respeitar as opções de cada um e o livro está, portanto, escrito com as duas versões ortográficas, conforme o autor de cada contributo. Bela tarefa a da revisão, hem!
Mas agora vem o caricato da história:estou fartinho de emendar textos do autor, porque está permanentemente a cair no uso de palavras conforme o atual Acordo... e eu a emendar-lhas para o antigo.
Engraçado, não é? Posso mostrar-lhe pessoalmente.
E o homem (do antigo AO), garanto-lhe, é um indivíduo culto e cheio de diplomas e medalhas.
O erro não escolhe Acordos...
Zé Serra, não resisti a partilhar na minha página do Facebook. Espero que não leve a mal. Estava a pensar pôr lá qualquer coisa a propósito do Dia Mundial e não podia encontrar melhor... Obrigado.
ResponderEliminarFez muito bem! Há que valorizar e dar a conhecer os escritores portugueses. Foi o que me disse a minha professora de Língua Portuguesa, quando lhe pedi autorização para publicar isto, que ele me enviou.
EliminarA desvalorização da Língua Portuguesa pelos portugueses já vem de longe...
ResponderEliminarMuito bem metido!
ResponderEliminarE «A Corte na Aldeia» é um livro extraordinário...
Grande Rodrigues Lobo, autor que tenho sempre à mão e que na "Corte na Aldeia" tem presente a magia de Sintra. Ligo pouco a "dias". Dia da língua portuguesa é quando um homem ou uma mulher quiserem. Agradeço aos colegas que se lembram destas coisas e não resisto a publicar este soneto de Natália Correia.
ResponderEliminarLÍNGUA MATER DOLOROSA
Tu que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda a bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luís Vaz a chama joalhada
tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,
eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.
Já na glote és cascalho és malho és míngua,
de brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca.
Fonte:
Poema publicado pela primeira vez no livro "Inéditos", 1973-76, e que integra a antologia de toda a poesia de Natália Correia, "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias", 2º volume, Projornal, Lisboa.'
O poema é conhecido, mas não fica mal a propósito do tal dia da língua portuguesa.
EliminarBelíssimo poema. Não conhecia.
EliminarSobre "A Corte na Aldeia" e Sintra, fui ver ao texto da Editorial Presença, 1982. Transcrevo a primeira nota do Diálogo I, autoria de José Adriano de Carvalho: « A localização da "aldeia" obedece às coordenadas dum "locus amoenus"..., grato para atrair, por diferentes razões, moradores, e assim, criar o fundo paisagístico do quadro dialógico. No entanto, a tentação de identificar essa "aldeia"... das cercanias de Lisboa, assumou, pela prinmeira vez (que saibamos), nas páginas de R. Jorge, "Francisco Rodrigues Lobo..."ed. cit., p. 325, que, prudentemente, aí insinua a sua identificação com Sintra... Depois, tal questão, através da introdução que A. Lopes Vieira apôs à mais divulgada das edições de "Corte na Aldeia" (Lisboa, Clássicos Sá da Costa, s.d.), passou a certeza... (conf., por exemplo, Diogo Ramada Curto, "O Discurso Político em Portugal, 1600-1650". Lisboa, Projecto Universidade Aberta, 1988, p. 46, obra, aliás, de esclarecida erudição ao serviço de uma aliciante interpretação)».
ResponderEliminar--- A nota é um bocado complicada, abusadora das reticências, desculpem lá, mas já agora é interessante saber-se que esta obra tem a ver com a "nossa" Sintra.
Ou, melhor ainda, com a Sintra de Ferreira de Castro.
EliminarLi em tempos de liceu (no caso, colégio)... e agora deixou-me com vontade de reler.
ResponderEliminarBom sinal.