30 de setembro de 2019

O INSTINTO SUPREMO



"-Tinha ouvido dizer que você era criado de bordo até vir para cá...
- Fui. Pouco tempo - tornou Manga Verde, com secura, como se lhe desagradasse aquela intervenção. Logo, porém, o seu rosto, longo e oval, na boca o espaço vazio de três dentes emigrados da frente, se abriu de novo. - É, ainda outro dia me estava a lembrar dessas coisas, quando se falava da loja de seu Lobo, em Três Casas. Você ouviu? Diferentes as coisas, mas parecidas. Quando eu era curumim, também havia uma loja diante da minha casa, em Manaus, mesmo diante, diante. Não mercearia, nem de dono de seringal, não. Loja pequena, de sírio, que tinha sido mascate. Fazendas, não sei que mais, brinquedos, pouca mercadoria. Havia um tambor pequeno e bonito, como esse dos brindes. Eu queria ele, mamãe não dava dinheiro, não tinha, e eu pensava que quando fosse homem também havia de ter uma loja. Loja maior, muita coisa, muitos brinquedos. Pensava, mas duvidava.
Calou-se um instante, olhou ao longe, como se fosse das cristas da floresta que a sua memória, voando, lhe acudisse melhor:
- Aos dezassete anos é que fui para criado de bordo. Para o «Japurá». Viu algum dia essa gaiola?
Etelvino hesitou:
- Há tantos vapores... Mas tenho uma ideia... Não era um de cano amarelo, com barra preta? Um pequeno, que ia para o Purus, para o Juruá...
Esse! Não era grande como um vaticano, não, mas também não era assim nenhuma lancha. Comida, muita e boa. Mas ordenado de moleque."

***

 Sempre a mesma mestria na construção da narrativa. Parece que tudo foi planeado ao pormenor, antes de começar a escrever. E sempre uma qualidade literária inquestionável.
Penso que a volta ao nosso patrono FC pode e deve ser um motivo para a enchente da sala, que tão desfalcada tem andado.
Até sexta-feira!
FF

20 de setembro de 2019

o início da CRÓNICA DO REI PASMADO

«1. A madrugada daquele domingo, tantos de Outubro, foi de milagres, maravilhas e surpresas, embora tivesse havido, como sempre, desacordo entre testemunhas e testemunhos.» Gonzalo Torrente Ballester, Crónica do Rei Pasmado [1989], trad. António Gonçalves, 4.ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1992, p. 11.

13 de setembro de 2019

o início de A ORDEM DO DIA

O Sol é um astro frio. O seu coração, espinhos de gelo. A sua luz, sem perdão. Em Fevereiro. as árvores estão mortas, o rio tornado pedra, como se a nascente não deitasse água e o mar não conseguisse engolir mais. O tempo imobiliza-se.» Éric Vuillard, A Ordem do Dia [2017], tradução de João Carlos Alvim, Lisboa, D. Quixote, 2018, p. 11.

5 de setembro de 2019

"gestos de trolha"

«Ouvira dizer que aquele era um lugar onde enfermeiras de mãos ásperas ajeitavam almofadas e mudavam algálias com gestos de trolha, e por isso palpava com pena o corpo debaixo do pijama, para se despedir dele.» Victória F. «Uma visita», Elogio da Infertilidade, Sintra, Câmara municipal, 2018, p. 11.