29 de novembro de 2023

25 poemas passados para português - #4

 HOMER CLAPP

Muitas vezes Aner Clete no portão
me recusou um beijo de adeus,
dizendo que tínhamos primeiro de estar noivos,
e só com um distante apertar-me da mão
me dava as boas-noites, quando eu a trazia a casa
do ringue de patinagem ou da igreja.
Mal tinha o ruído dos meus passos sumido na distância
e Lucius Atherton
(o que eu soube quando Aner se foi para Peoria)
lhe entrava pela janela ou a levava
no carro puxado pela parelha baia
a passear no campo.
O desgosto levou-me a tratar da vida
e pus todo o dinheiro da herança de meu pai
na fábrica de latas, para conseguir
ser chefe da contabilidade, e perdi tudo.
Foi quando entendi que eu era um dos bobos da Vida,
a quem só a morte trataria como igual
aos outros homens, fazendo que eu me sentisse um homem.


Edgar Lee Masters (Garnett, Kansas, 1868 - Elkins Park, Pensilvânia, 1950)
versão de Jorge de Sena (Lisboa, 1919 - Santa Bárbara, Califórnia, 1978),
Poesia do Século XX (1978) 

 Often Aner Clute at the gate
Refused me the parting kiss,
Saying we should be engaged before that;
And just with a distant clasp of the hand
She bade me good-night, as I brought her home
From the skating rink or the revival.
No sooner did my departing footsteps die away
Than Lucius Atherton,
(So I learned when Aner went to Peoria)
Stole in at her window, or took her riding
Behind his spanking team of bays
Into the country.
The shock of it made me settle down,
And I put all the money I got from my father's estate
Into the canning factory, to get the job
Of head accountant, and lost it all.
And then I knew I was one of Life's fools,
Whom only death would treat as the equal
Of other men, making me feel like a man.

28 de novembro de 2023

TEM DIAS XIV

 TEM DIAS XIV









E. M. MELO E CASTRO, nova 2, magazine de poesia e desenho, s/d

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XI

 

Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada badalada tua

Soa dentro da minha alma.


E e tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.


Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho,

Soas-me na alma distante.


A cada pancada tua,

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.


FERNANDO PESSOA

27 de novembro de 2023

101 poemas portugueses - #10


JORGE

Constantemente vejo o filho amado
Na minha escuridão, onde fulgura
A estática pupila da loucura,
Sinistra luz dum cérebro queimado.

Nas rugas de seu rosto macerado
Transpira a cruciantíssima tortura
Que escurentou na pobre alma tão pura
Talento, aspirações... tudo apagado!

Meu triste filho, passas vagabundo
Por sobre um grande mar calmo, profundo,
Sem bússola, sem norte e sem farol!

Nem gosto nem paixão te altera a vida!
Eu choro sem remédio a luz perdida...
Bem mais feliz és tu, que vês o sol.


Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825 - São Miguel de Seide, Vila Nova da Famalicão, 1890), Nas Trevas (1890) / Poesia, edição de Ernesto Rodrigues, 2008. 

25 de novembro de 2023

TEM DIAS XIII



 Pergunto


Pergunto pelos braços

que neste campo

eram barcos e trigo,

sémen e ovários.


- Longe, despertam,

respiram, cantam.


Pergunto pelas velas

que nesta praia

eram fome que ao vento

ganhava asas.


- Longe, iluminam

diferentes águas.


Pergunto pelo canto

que nas searas

não era esta cinza

de acerbos cardos.


- Longe, celebra

a nossa raiva.


Pergunto pelos corpos

que nestas camas

se lavravam até

florir crianças.


-Amam, germinam.

Mas tão distantes !


Serão as naves

do novo sangue?



JOSÉ BENTO, in Movimento (cadernos de poesia & crítica) , Funchal, 1973.


24 de novembro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. X


 REGRESSO AO LAR


Ai, há quantos anos que eu parti chorando

Deste meu saudoso, carinhoso lar!...

Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...

Minha velha ama, que me estás fitando,

Canta-me cantigas para me eu lembrar.


Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...

Só achei enganos, decepções, pesar...

Oh! a ingénua alma tão desiludida!...

Minha velha ama, com a voz dorida, 

Canta-me cantigas de me adormentar!...


Trago d'amargura o coração desfeito...

Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!

Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...

Minha velha ama que me deste o peito,

Canta-me cantigas para me embalar!...


Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho

Pedrarias d'astros, gemas de luar...

Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...

Minha velha ama, sou um pobrezinho...

Canta-me cantigas de fazer chorar!


Como antigamente, no regaço amado,

(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!

Ai, o teu menino, como está mudado!

Minha velha ama, como está mudado!

Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...


Canta-me cantigas, manso, muito manso, 

Tristes, muito tristes, como à noite o mar...

Canta-me cantigas para ver se alcanço

Que a minha'alma durma, tenha paz, descanso,

Quando a morte, em breve, ma vier buscar!...


GUERRA JUNQUEIRO




101 poemas portugueses - #9

 

SONETO


Sobre estas duras, cavernosas fragas,

Que o marinho furor vai carcomendo,

Me estão negras paixões n'alma fervendo,

Como fervem no pego as crespas vagas.


Razão feroz, o coração me indagas,

De meus erros a sombra esclarecendo,

E vás nele (ai de mim!) palpando e vendo

De agudas ânsias venenosas chagas.


Cego a meus males, surdo a teu reclamo

Mil objectos de horror co a ideia eu corro,

Solto gemidos, lágrimas derramo.


Razão, de que me serve o teu socorro?

Mandas-me não amar; eu ardo, eu amo:

Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.


Manuel Maria Barbosa du Bocage (Setúbal, 1765 - Lisboa, 1805)

in José Régio (Vila do Conde, 1901-1969), As Mais Belas Líricas Portuguesas (s.d.)

23 de novembro de 2023

"Olhos de Anoitecer" de Miguel de Unamuno

"
Olhos de anoitecer os de tua cara
e luz de lua cheia dentro deles,
lume de argênteas centelhas ao vê-los
quando entre as sombras alvos sulcos ara.

Ao suave fulgor da lua clara
de teus olhos, parecem teus cabelos
em tua fronte misteriosos selos
que selam o segredo que te ampara.

E além, mais dentro, no fechado limbo
do coração, um botão donde brote
a flor de imensidão, rubro corimbo

de estrelas que o Destino pôs por lote
em tua senda, dando-lhes por nimbo
a névoa do mistério que é teu dote."

Bilbau, IX-1910



"Antologia Poética" de Miguel de Unamuno
Assírio & Alvim, Dezembro de 2003

22 de novembro de 2023

TEM DIAS XII

 



DA COSTA DE CASCAIS


Aqui, na orla do mar, as cruzes

são sinais de pescadores perdidos

no fundo, mortos, quando buscam

o sal da vida. Em vez de a sua força

fazer ceder a vaga sob o anzol,

é a força do mar ou a paixão da vida

- arquejante e morta -

que os puxa para um purgatório

de água revolta e de limos.


FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO, As fábulas, 2002

25 poemas passados para português - #3


 A UM PIRILAMPO


A chuva não apaga o teu fulgor,

          o vento aumenta o teu ardor.

Porque não voas para o céu distante

          e és, ao luar, uma estrela cintilante?


Li Bai (Tokmok, no actual Quirguistão, 701 - Dangtu, hoje Ma'anshan, 762) 

versão de António Graça de Abreu, in Poemas de Li Bai

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (47)


O PORTUGAL FUTURO

 

O Portugal futuro é um país

aonde o puro pássaro é possível

e sobre o leito negro do asfalto da estrada

as profundas crianças desenharão a giz

esse peixe da infância que vem na enxurrada

e me parece que se chama sável

Mas desenhem elas o que desenharem

é essa a forma do meu país

e chamem elas o que lhe chamarem

Portugal será e lá serei feliz

Poderá ser pequeno como este

ter a oeste o mar e a Espanha a leste

tudo nele será novo desde os ramos à raiz

À sombra dos plátanos as crianças dançarão

e na avenida que houver à beira-mar

pode o tempo mudar será verão

Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz

mas isso era o passado e podia ser duro

edificar sobre ele o Portugal futuro

 

RUY BELO, Homem de Palavra(s)  (1970)


21 de novembro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. IX

 

ÉCLOGA DE JANO E FRANCO (excerto)


Dizem que havia um pastor

antre Tejo e Odiana,

que era perdido de amor

per ua moça  Joana.

Joana patas guardava

pela ribeira do Tejo,

seu pai acerca morava,

e o pastor, de Alentejo

era, e Jano se chamava.


Quando as fomes grandes foram,

que Alentejo foi perdido, 

da aldeia que chamam o Terrão

foi este pastor fugido.

Levava um pouco de gado,

que lhe ficou doutro muito

que lhe morreu de cansado:

que Alentejo era enxuito

d'água e mui seco de prado.


Toda terra foi perdida;

no campo do Tejo só

achava o gado guarida:

ver Alentejo era um dó!

E Jano, para salvar

o gado que lhe ficou,

foi esta terra buscar;

e um cuidado levou,

outro foi ele lá achar.


O dia que ali chegou

com seu gado e com seu fato,

com tudo se agasalhou

em ua bicada de um mato.

E levando-o a pascer,

o outro dia, à ribeira,

Joana acertou de ir ver,

que se andava pela beira

do tejo a flores colher.


BERNARDIM RIBEIRO

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (46)


MEDITAÇÃO DO DUQUE DE GANDIA SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL

 

Nunca mais

A tua face será pura limpa e viva

Nem o teu andar como onda fugitiva

Se poderá nos passos do tempo tecer.

E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

 

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

A luz da tarde mostra-me os destroços

Do teu ser. Em breve a podridão

Beberá os teus olhos e os teus ossos

Tomando a tua mão na sua mão.

 

Nunca mais amarei quem não possa viver

Sempre,

Porque eu amei como se fossem eternos

A glória, a luz e o brilho do teu ser,

Amei-te em verdade e transparência

E nem sequer me resta a tua ausência,

És um rosto de nojo e negação

E eu fecho os olhos para não te ver.

 

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro

Que em dias demorados eu teci

Pois o tempo já não regressa a ti

E assim eu não regresso e não procuro

O deus que sem esperança te pedi.

 

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, Mar Novo (1958)


POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (45)

 

O AMOR EM VISITA

 

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.

 

Cantar? Longamente cantar.

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar traspassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas –

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.

Ele – imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

 

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.

E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do corpo faminto.

– Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria.

 

(…)

 

HERBERTO HELDER, A Colher na Boca (1961)


20 de novembro de 2023

"Caminhas ..." de Leonor de Almeida

"Caminhas ...
E aceitas
simplesmente
a morte da primavera
como a morte da criança que foste,
crente de que não te renderás
ao crepúsculo do outono,
nem consentirás
que o látego das suas folhas perdidas
vergaste teu rosto,
pois saberás obrigá-lo a dormir
o sono do guerreiro do efémero,
no outro lado
dos horizontes indecifráveis,
onde não soam as horas das estações! ..."



Leonor de Almeida em "Na curva escura dos cardos do tempo"
Ponto de Fuga
1ª edição, Agosto de 2020
Página 91

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (44)

 

AS PALAVRAS

 

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.

 

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.

 

Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.

 

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

 

EUGÉNIO DE ANDRADE, Coração do Dia (1958)


19 de novembro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. VIII

 

CANTIGA


Descalça vai para a fonte

Leonor pela verdura

Vai formos, e não segura.


A talha leva pedrada,

Pucarinho de feição,

Saia de cor de limão,

Beatilha soqueixada;

Cantando de madrugada

Pisa flores na verdura:

Vai formosa, e não segura.


Leva na mão a rodilha

Feita da sua toalha,

Com uma sustenta a talha,

Ergue com outra a fraldilha;

Mostra os pés por maravilha,

Que a neve deixam escura:

Vai formosa, e não segura.


As flores por onde passa,

Se o pé lhe acerta de pôr,

Ficam de inveja sem cor

E de vergonha com graça:

Qualquer pegada que faça

Faz flore3scer a verdura:

Vai formosa, e não segura.


Não na ver o Sol lhe val

Por não ter novo inimigo,

Mas ela corre perigo

Se na fonte se vê tal;

Descuidada deste mal

Se vai ver na fonte pura:

Vai formosa, e não segura.


F. RODRIGUES LOBO


TEM DIAS XI

 


Um rumor de árvores num obscuro frescor

que trespassa o jardim e o patamar deserto

o bafo de uma lâmpada nocturnamente azul

um eco de cavalos uma sombra materna

um crepúsculo de água uma flauta cintilante

uma alameda húmida em vegetal sossego

um odor de segredo que amanhece no vidro

gotas de sombra pesadas sinuosas

o tecido de chuva ondulando nos telhados

a música das cadeiras em círculo no terraço

e as escadas que delicadas sobem no vazio


ANTÓNIO RAMOS ROSA, As armas imprecisas, 1992


POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (43)

 

Saudoso já deste verão que vejo,

Lágrimas para as flores dele emprego

           Na lembrança invertida

           De quando hei-de perdê-las.

Transpostos os portais irreparáveis

De cada ano, me antecipo a sombra

            Em que hei-de errar, sem flores,

            No abismo rumoroso.

E colho a rosa porque a sorte manda.

Marcenda, guardo-a; murche-se comigo

            Antes que com a curva

            Diurna da ampla terra.

 

RICARDO REIS, “Ode XVIII”, Athena, nº 1, Outubro de 1924


18 de novembro de 2023

101 poemas portugueses - #8


Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

Marquesa de Alorna
(Leonor de Almeida Portugal, 
Lisboa, 1750-1839)
in M. Rodrigues Lapa, Poetas do Século XVIII (1967)

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (42)

 

LISBON REVISITED

(1923)

 

Não: não quero nada.

Já disse que não quero nada.

 

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.

 

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!

Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

 

Que mal fiz eu aos deuses todos?

 

Se têm a verdade, guardem-na!

 

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

 

Não me macem, por amor de Deus!

 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.

Assim, como sou, tenham paciência!

Vão para o diabo sem mim,

Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!

Para que havemos de ir juntos?

 

Não me peguem no braço!

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho,

Já disse que sou só sozinho!

Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

 

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –,

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral e mudo,

Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

 

ÁLVARO DE CAMPOS


17 de novembro de 2023

TEM DIAS X

 




dá-me a linguagem



dá-me a linguagem

do centro das pedras

aquela secura

a clivagem certa


dá-me os rebordos

cortantes das pedras

seu voo ofensivo

o fácil arremesso


dá-me a centelha

da pele das pedras

aquela dureza

com que são objectos


VASCO GRAÇA MOURA, Artes Poéticas, 2002 





POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (41)

 

Ao entardecer, debruçado pela janela,

E sabendo de soslaio que há campos em frente.

Leio até me arderem os olhos

O livro de Cesário Verde.

 

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês

Que andava preso em liberdade pela cidade.

Mas o modo como olhava para as casas,

E o modo como reparava nas ruas,

E a maneira como dava pelas coisas,

É o de quem olha para árvores,

E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando

E anda a reparar nas flores que há pelos campos…

 

Por isso ele tinha aquela grande tristeza

Que ele nunca disse bem que tinha,

Mas andava na cidade como quem anda no campo

E triste como esmagar flores em livros

E pôr plantas em jarros…

 

ALBERTO CAEIRO, poema III de “O Guardador de Rebanhos”, 1911-1912


16 de novembro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (40)

 

NOITE

 

      Ah! que le monde est grand à la clarté des lampes!

 

Na solidão da noite releio Baudelaire

A luz mortal desfez-se há muito nas cidades

Ah como é grande o mundo à luz ideal das lâmpadas

nos mapas irreais dos desejos amargos

 

Do dia já passou o cortejo de cegos

Os seus olhos colheram da cal viva os excessos

Ninguém mais reconhece os lugares gloriosos

onde a luz imortal solta os leões do sol

 

Por detrás desses olhos numa câmara fria

como uma grande cobra a morte dorme e espera

Tem o corpo do mundo deitado entre os anéis

para os mostrar inerte à luz do dia

 

GASTÃO CRUZ, As Leis do Caos (1990)



15 de novembro de 2023

TEM DIAS IX

 


Programa


Enfrenta o sol que vem e adivinha

o azul de amendoeiras que são brancas.


Dá livre curso ao fogo, à plena ave

que voa no teu corpo ou nele se enlaça.


Percorre ( e amadurece) esse veludo

de marear no centro dos abismos

onde procuras erva e um frescor de rio.


Não penses na raíz, nas incisões

da cinza sobre as valas

ou nos vitrais do frio.


Segue o teu corpo a cavalgar a brisa

com flâmulas de assombro

e um punhal em riste.



JOÃO RUI DE SOUSA, Ardorosa Súmula, Clepsydra colecção de poesia 1, Coisas de Ler, 2016.

25 poemas passados para português - #2

 

Ah, não chores por mim quando eu morrer,

quando soar o dobre magoado

dizendo ao mundo vil que, fatigado,

com vilíssimos vermes fui viver.

Lendo meus versos, deves esquecer

a mão amiga que lhes deu traslado;

bem doce é reflorir num peito amado

mas torna-se cruel se o faz sofrer.

Não, se vires esta rima dolorida

quando a terra em seus braços me retome,

que finde o teu amor co’a minha vida,

que nem recordes o meu póprio nome –

Pois se o mundo te vê na dor absorto,

inda zomba de mim depois de morto


William Shakespeare (Strattford-upon-Avon, 1564-1616)

[versão de Luís Cardim (Cascais, 1879 - Porto, 1958),  Horas de Fuga (1952)]


No longer mourn for me when I am dead,

Than you shall hear the surly sullen bell

Give warning to the world that I am fled

From this vile world, with vilest worms to dwell:

Nay, if you read this line, remember not

The hand that writ it; for I love you so,

That I in your sweet thoughts would be forgot,

If thinking on me then you should make you woe.

O, if (I say) you look upon this verse,

When I perhaps compounded am with clay,

Do not so much as my poor name rehearse;

But let you love even with my life decay;

Leste the wise world should look into your moan,

And mock you with me after I am gone.[i]



[i] The Works of William Shakspeare, London, Frederick Warne and Co., s.d., p. 1092.

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (39)

 

JUNTO À ÁGUA

 

Os homens temem as longas viagens,

os ladrões da estrada, as hospedarias,

e temem morrer em frios leitos

e ter sepultura em terra estranha.

 

Por isso os seus passos os levam

de regresso a casa, às veredas da infância,

ao velho portão em ruínas, à poeira

das primeiras, das únicas lágrimas.

 

Quantas vezes em

desolados quartos de hotel

esperei em vão que me batesses à porta,

voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!

 

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,

sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,

e no meio das multidões dos aeroportos.

Agora só quero dormir um sono sem olhos

 

e sem escuridão, sob um telhado por fim.

À minha volta estilhaça-se

o meu rosto em infinitos espelhos

e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

 

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

Anoitece em todas as cidades do mundo,

acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos

onde o meu coração, falando, vagueia.

 

MANUEL ANTÓNIO PINA, Um Sítio onde Pousar a Cabeça (1991)



14 de novembro de 2023

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. VII

 

CANTIGA


Descalça vai para a fonte

Leonor pela verdura;

vai formosa, e não segura.


Leva na cabeça o pote,

O testo nas mãos de prata,

Cinta de fina escarlata,

Sainho de chamalote;

Traz a vasquinha de cote,

Mais branca que a neve pura;

Vai formosa, e não segura.


Descobre a touca a garganta,

Cabelos de ouro o trançado,

Fita de cor de encarnado.

Tão linda que o mundo espanta;

Chove nela graça tanta

Que dá graça à formosura;

Vai formosa e não segura.


LUÍS DE CAMÕES

II Encontros Castrianos de Sintra - Nos 90 anos de ETERNIDADE

 


TEM DIAS VIII

 


Um dia virás ter comigo

sentada numa nuvem.


E quando chover,

cairás em meus braços

com um sorriso de água

                         nos teus lábios.


EMANUEL JORGE BOTELHO, Consciências de mim que a Ti devo, edição de autor, Ponta Delgada, 1978.

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (38)

 

MARIA SENDE

 

Havia o vento sobre a cabeça dos milhos

havia a chuva sobre as águas dos rios

e havia a carícia de fogo do «cavalo-marinho»

sobre as cabeças dos homens.

 

E na longa noite de África

havia

almas perdidas em desejos de vida

canções surumadas de sofrimento

mãos endurecidas na masturbação das facholas

e bocas aluadas de gritos

no xigubo!

 

E nós, Maria Sende

homem e mulher na manhã das origens

juntos na espiral de um sonho

preto-e-branco

sem raças!

 

JOSÉ CRAVEIRINHA, Karingana ua Karingana (1974)

 

Glossário Xi-Ronga – Português

- FACHOLA: Pá. Do inglês «Fire-shovel».

- XIGUBO: Dança de exaltação guerreira antes ou depois da batalha.

- KARINGANA UA KARINGANA: Fórmula clássica de iniciar um conto, «Era uma vez».


13 de novembro de 2023

TEM DIAS VII

 

A COLHER



Reabro uma

gaveta da infância

e encontro a colher em desuso caída

a sopa lentamente se escoando

no prato fundo:


a vida

em certos dias tinha a forma

daquele objecto antigo

tocando-me  nos

lábios com um calor excessivo



GASTÃO CRUZ, Repercussão, poesia inédita portuguesa, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (37)

 

QUALQUER COISA DE INTERMÉDIO

 

                    Eu não sou um nem outro:

                        Sou qualquer coisa de intermédio

                                                                M. de Sá-Carneiro

 

Se eu fosse o outro,

o do chapéu macio e do bigode

eternizado em cúbico arremedo,

angústia dividida em tantas partes

e óculos redondos,

podia-te contar eu guardador e sonhos

 

Se eu fosse o outro,

o delicado e bêbado génio de nós todos,

o que amou estranho e sabia dizer

coisas enormes numa pequena língua

e fraco império,

se eu fosse aquele inteiro

ditado de exageros e exclusões,

falava-te de tudo em ingleses versos

 

E mesmo se não foi ele quem disse

(e podia até ser, que eram amigos

e o século a nascer arrepiava como já não

o fim) há razão nessa história do pilar

e do tédio a escorrer de um

para o outro

 

ANA LUÍSA AMARAL, Minha Senhora de Quê (1990)