21 de novembro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (45)

 

O AMOR EM VISITA

 

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.

 

Cantar? Longamente cantar.

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar traspassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas –

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.

Ele – imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

 

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.

E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do corpo faminto.

– Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria.

 

(…)

 

HERBERTO HELDER, A Colher na Boca (1961)


6 comentários:

  1. Entre outras coisas, O HHelder tinha o estro de quem gosta de mulheres e das mulheres.

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    1. Como este não há outro na nossa poesia do século XX. A força de Vida é avassaladora, triunfo de Eros em toda a linha. Poema composto de 223 versos, só publico os 28 das primeiras 3 estrofes. No cartapácio de "Poesia Toda" é referido, em nota final, que os 43 versos iniciais foram publicados, em Maio de 1957, no suplemento "Ágora" da revista "Voz do Tejo" (Almada); enquanto os 36 finais saíram, em Abril de 1958, nos "Cadernos do Meio-Dia", de Faro. Há portanto uma tradição de publicações parciais do poema. Fico mais descansado.

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  2. É um facto, não há outro. No meu caso, não é um dos meus poetas, o que não retira nem acrescenta nada.

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  3. Não estava a imaginar H.H. tão fogoso, mesmo como poeta! ;)

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  4. Ah, Herberto Helder ❤️
    Embora consiga destacar os meus livros favoritos ("A Colher na Boca", "Húmus", "Dedicatória", "Última Ciência) e, mesmo fora deles, agrupe uma série de poemas aos quais irei regressar, nada bate "A Colher na Boca": n' "A Morte Sem Mestre" o poeta escreve

    "e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,
    vou morrer como um cão deitado à fossa!"

    E isso comove-me, sem me entristecer; pode ser verdade que o tenha sentido assim, que não tenha cultivado a delicadeza e/ou que a tenha perdido (concordemos ou não)... mas ela existiu na sua escrita e "A Colher na Boca" é um testemunho de tudo isso.

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  5. Eu também... mas não consigo escrever assim. J. A. Marcos Serra

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