Terra Virgem (1882) é o primeiro livro em prosa de D'Annunzio (1863-1938), muito influenciado ainda pelo chamado verismo literário. O cenário decorre nos Abruzos, região da Itália central, na costa adriática, de onde o escritor era natural, e as figuras que perpassam pela maioria dos contos são seres rente ao chão, vadios, aleijados, raparigas inocentemente sensuais, rapazes largados à sua sorte, acabando por cansar um pouco o desfile de abortos e desgraçado atavismo. Mas há um enlevo para com a paisagem, que em parte condiciona os indivíduos, que acaba por redimir a obra. O último conto, «Lázaro» sintetiza, no seu inefável horror, boa parte destes contos.
Estava de pé, em frente da barraca, meio embrutecido, amortalhado num fato de malha sujo, que se lhe rugava nas barrigas das pernas esqueléticas; fitava o campo lívido, taciturno, entristecido pelas poucas árvores despidas de folhagem, que se erguiam esguias por baixo dum dossel de nuvens pardacentas, humedecidas pela neblina. Fitava o campo lívido e o clarão sinistro da fome incendiava-lhe o negrume dos olhos. A barraca, coberta de lona encharcada pela chuva, assemelhava-se na penumbra a enorme animal, todo ossos e pele flácida.
Passaram um dia sem comer; os últimos bocados de pão havia-os devorado naquela manhã o filho, esse pequeno monstro humano, de crânio calvo e separado como esférica abóbora. Ele, porém, o mísero, tinha o ventre mais vazio do que o tambor no qual rufava, para atrair os curiosos e exibir o horrível fenómeno a troco dalguns cobres. Não se enxergava, porém, alma viva e a criança jazia dentro da barraca, deitada num montão de velhos farrapos, as pernas contorcidas, o busto deformado, matraqueando os dentes num acesso de febre, enquanto o rufar das baquetas na pele do tambor lhe produzia espasmos dolorosos nos temporais.
Do céu escurentado tombava uma chuva miudinha, persistente, raivosa, que, por toda a parte se infiltrava, encharcava até à medula, gelava o sangue.
O rufar do tambor perdia-se sem eco na tristeza do crepúsculo outonal; e Lázaro rufava, rufava de pé, lívido, triste, cravando o olhar angustiado na sombra como para descortinar nela algo que devorasse, apurando o ouvido a cada momento na ânsia de ouvir as vaias de alguns borrachos que se aproximassem. Por duas ou três vezes se voltou para examinar o ignóbil farrapo de carne viva, que arquejava estendido por terra, e, de todas, os olhos do mísero fixavam outros onde se lia a suprema dor.
Não se avistava vivalma. A sombra dum cão surgiu duma viela negra, passou com rapidez em frente de Lázaro, cauda entre as pernas, e parou por detrás da barraca para esburgar um osso encontrado Deus sabe onde. O tambor calava-se; rajadas de vento faziam turbilhonar folhas secas arrancadas dos galhos das carvalheiras. Pairou seguidamente pávido silêncio, silêncio apenas quebrado de vez em quando pelo rosnar do cão, o surdo rumor das cordas de água fustigando a lona branca e o estertor da criança -- um estertor que parecia sair duma garganta mutilada.
Gabriele d'Annunzio, Terra Virgem, trad., M. L., Lisboa, Editorial Minerva, 1955.
LÁZARO
Gabrielle D'Annunzio
Passaram um dia sem comer; os últimos bocados de pão havia-os devorado naquela manhã o filho, esse pequeno monstro humano, de crânio calvo e separado como esférica abóbora. Ele, porém, o mísero, tinha o ventre mais vazio do que o tambor no qual rufava, para atrair os curiosos e exibir o horrível fenómeno a troco dalguns cobres. Não se enxergava, porém, alma viva e a criança jazia dentro da barraca, deitada num montão de velhos farrapos, as pernas contorcidas, o busto deformado, matraqueando os dentes num acesso de febre, enquanto o rufar das baquetas na pele do tambor lhe produzia espasmos dolorosos nos temporais.
Do céu escurentado tombava uma chuva miudinha, persistente, raivosa, que, por toda a parte se infiltrava, encharcava até à medula, gelava o sangue.
O rufar do tambor perdia-se sem eco na tristeza do crepúsculo outonal; e Lázaro rufava, rufava de pé, lívido, triste, cravando o olhar angustiado na sombra como para descortinar nela algo que devorasse, apurando o ouvido a cada momento na ânsia de ouvir as vaias de alguns borrachos que se aproximassem. Por duas ou três vezes se voltou para examinar o ignóbil farrapo de carne viva, que arquejava estendido por terra, e, de todas, os olhos do mísero fixavam outros onde se lia a suprema dor.
Não se avistava vivalma. A sombra dum cão surgiu duma viela negra, passou com rapidez em frente de Lázaro, cauda entre as pernas, e parou por detrás da barraca para esburgar um osso encontrado Deus sabe onde. O tambor calava-se; rajadas de vento faziam turbilhonar folhas secas arrancadas dos galhos das carvalheiras. Pairou seguidamente pávido silêncio, silêncio apenas quebrado de vez em quando pelo rosnar do cão, o surdo rumor das cordas de água fustigando a lona branca e o estertor da criança -- um estertor que parecia sair duma garganta mutilada.
Gabriele d'Annunzio, Terra Virgem, trad., M. L., Lisboa, Editorial Minerva, 1955.
Boa ideia!
ResponderEliminarViva! Em parte é uma resposta ao seu desafio.
EliminarAbraço
Ao COVID-19 devo também a saborosa leitura de uma obra ímpar da nossa literatura.
ResponderEliminarDela retirei este pedacinho, aliás o início. Faz lembrar a lírica do também imortal Vergílio Públio Marão.
'Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado,
De tosco trato, de expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóes queimado.
Tenho próprio casal, e nelle assisto,
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lans, de que me visto.
Graças, Marília Bella,
Graças à minha Estrella!
Eu vi o meu semblante n'uma fonte,
Dos annos inda não está cortado;
Os pastores que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado;
Com tal destreza tóco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste;
Ao som della concérto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha.
Graças, Marília Bella,
Graças à minha Estrella!
(Marília de Dirceu, Tomás António Gonzaga)
Que ricos versos não faria ele ao Covid (como vírus é uma palavra do género masculino, também prefiro dizer 'o Covid'.; porém nos 'media' vejo as pessoas a utilizarem o género feminino, talvez referindo-se à pandemia...
EliminarMas acho que o Tomás Gonzaga, caso quisesse tecer loas ou pragas ao covid, jamais usaria o feminino. Esse, reserva-o para casos de amor...
EliminarMuito bem! Isto tem andado animado com Virgílios e Vergílios, mais Marílias… embora destas a minha preferida seja aquela cujos versos iniciais falam assim: «Pavorosa ilusão da Eternidade, / Terror dos vivos, cárcere dos mortos», etc.
ResponderEliminarTenho andado muito entretido com a SeMaNa SaNtA e a SaNtA PáScOa, a furtar-me ao vírus insolente, voltarei logo que possível.
Abraço confinado, ou, melhor, pseudoconfinado.
Também há a Lucília, a guitarra do B. B. King...
Eliminar...
ResponderEliminarFoi então que eu passei, em busca de nem sei o quê; talvez de mim mesmo. Aproximei-me. Vi. Franziu-se-me a testa. Chorei. E quando meti a mão no bolso para ajudar, descobri que só tinha dinheiro: naquele lugar,tão inútil como a terra que pisava. Era de pão que eu precisava.
Abracei Lázaro, chorámos juntos, e prometi-lhe que voltaria.
Fui.
Regressei.
Chorámos de novo. Desta vez, de esperança, porque a alegria se tornara impossível.
J. A. Marcos Serra
Ora aí está um 'prolongement', como diria Derrida, não confundir com a Dalida, cantora, que nunca entoou o 'Dailidô'...
EliminarO horrível belo, é o que posso dizer.
ResponderEliminarO horrendo, portanto.
Eliminar... ou comovente?...
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