Um texto, como tantos outros, de exaltação da terra de adopção, introduzindo de um característico do lugar, que sempre os há. Mas também há expressões que me fascinam, denotando um trabalhar lúdico das palavras: "para aqui me cuspiu um solavanco brusco e destrambelhado da carripana que nos transporta do berço à sepultura", "brincalhotando no ar a chuva miúda"; "amesend[ar-se] com a morte".
NOTAS PARA FAZER UM CONTO…
Maia Alcoforado
Ao
Carvalhão Duarte
Ao cabo da estrada que de Cantanhede fica apontada ao mar -- uma
recta enorme, tamanha como uns dez quilómetros bem puxados, enfadonha e triste,
com três montes de casas poisados nas ilhargas e alguns fornos de cal
enrodilhando de fumo negro a ramaria dos pinheiros -- velhos, com mais de um
século e altos como alarves -- aparece-nos de enfiada na ponta do nariz a Vila
de Mira, que, ao contrário de Cantanhede, comarcã e burguesa, afidalgada e
petulante, não tem na sua monografia capítulo de monta, nem réstia forte de
alambicada pretensão... Terra de gente ordeira que o vinho em dias de arraial
ou de mercado não torna ruim, trabalhadora e honesta, com uma percentagem que
mal se enxerga em pilhas e madraços, ciosa dos bens que por direito de herança
aferroa e arrecada com jeito económico, mas sem modos de usura -- para aqui me
cuspiu um solavanco brusco e destrambelhado da carripana que nos transporta do
berço à sepultura, num dia aziago, de sol esplêndido e luminoso, brincalhotando
no ar a chuva miúda do seu pólen doirado...
O
povo mirão que anda à bulha com o mar uma grande parte do ano, porque é
pescador que se arroja e atreve com as suas charrafuscas e motins e que
desentranha a terra a golpes de enxada e amamenta os filhos nas arrevezadas
lições do trabalho -- precisa que, de quando em quando, falem dele nestes
lençóis onde se esculpem letras e estampam gravuras, porque anda até os gornes
da garganta farto de tanto ostracismo que o tolhe e engarrafa.» Pois se é raro o mapa onde se topa o nome da terra... -- e tem foral,
que recebeu das mãos venturosas do Senhor D. Manuel I e é concelho antigo e
mais remoto fora se Cantanhede não lhe tivesse, sorrateiro, surripiado a
primeira autonomia há mais de trinta anos...
Foi aqui que em 1856, a 26 de Março, se amesendou com a
morte o mavioso e rebelde Francisco Joaquim Bingre -- o Francélio Vouguense da Nova Arcádia -- e que, aquando
da fúria pombalina, se agacharam parentes dos Távoras -- de quem ainda agora há
restos, numa degenerescência vulgar, doentia e inútil...
O solo é fecundo, porque de bem trabalhada no alqueive não há
leira que não resplenda, nem brilhe; quintal que não sorria para a gente com o
seu pomar e a sua horta; vinhedo que pelo São Tiago não tenha os bagos
pintados, limpos, carnudos -- que os pardais depenicam numa orgia arreliadora
de amarrotados gorjeios...
De um lado o mar; do outro, a gândara -- a enfaixá-la, a cingi-la,
em sombras e em claridade.
O
mar estrebuchando a toda a hora de encontro às casas dos pescadores, feitas de
madeira velha e de originais feições -- a escoucinhar na areia e às trombadas
nas dunas, berrando como um doido, barafustando de espinha dorsal erguida como
tirano a quem não arrefece a ira…
A gândara, silenciosa e erma, de pinheiros hirtos como a
soldadesca impávida que não se move nem pestaneja e por onde vagueiam sombras
de que não se entendem as formas à maneira que o sol desanda na sua elipse --
alinhavada de carreiritos estreitos que em certa quadra do ano as moças que vão
à cata das pinhas, à caruma e ao rapão, palmilham de bustos alçados e quadris
coleantes, num formigueiro polícromo e alegre...
E, já que falo das moças, deixem-me concluir: -- nenhuma delas
possui beleza clássica que entonteça, ou que perturbe, mas não lhes escasseia a
graça dum sorriso tentador, e elegância fenícia, delevelmente mutilada e a luz
vibrante duns olhos copiada da luz do sol à hora rútila das sestas...
Anda por aqui um doido que, como uma sombra, viscosa
como a lama e trágica como o perfil de todas as sombras que o dedo maldito do
fatalismo desenha e imprime nas paredes negras de certas vidas, leva as manhãs
num vozeirão de tribuno, pletórico de frasalhões aprendidos e decorados no
tempo em que ainda tinha juízo, a correr as ruas a assaltar quem passa,
protestando cóleras e inflingindo insultos, àquilo que ele supõe ser o morbus
que destrói e deteriora os alicerces milenários da sociedade e do mundo, da
civilização e dos costumes...
É
alto e forte como as paredes mestras dos antigos castelos.
O seu carão moreno, semeado de rugas profundas, onde baila e vibra a
chama azul e ingénua duns olhos que eu vi algures descritos nuns versos de
Espronceda, tem a expressão indómita dum batalhador que não se deixa vencer a
golpes de cutelo...
Às vezes fico-me a pensar se este doido que anda por aqui,
só nas manhãs em que o sol doira os prados e as veigas, namorado da luz,
arremedando com a sua cabeleira que lhe cai desmazeladamente sobre
os ombros, os Apóstolos e os revolucionários, não devia ser cuidadosamente
escutado por tantos que por aí andam a semear teorias e a impingir princípios
-- de que nunca se vêm os fins...
Talvez que aprendessem com o doido -- com este doido que num
vozeirão de tribuno, apregoa, em frases onde abunda o bom estilo e onde não
escasseia a ironia que contunde, fere e faz sangrar, aquilo que para ele e para
muitos que passam por doidos, mas que têm juízo às carradas -- é a traça e o
gorgulho que dizima e rói as aduelas do mundo e as arcadas sobre que assenta a
civilização...
1945
Paisagem
do Dia Ausente, Porto, Edições AOV, 1947
Pois...
ResponderEliminarJosé Francisco de Paula da Ressurreição Oliveira Maia Alcoforado, me informa, solícito, o bom do Google, mal lhe insiro um gatafunho...
Nasceu em Panóias, no Alentejo e viveu grande parte da sua vida em Mira, terra que lhe inspirou (ou expirou, tamanho é o entranhamento) este conto. Foi um aguerrido republicano e anti-fascista...
Mais um para a colecção (literária). Ainda que não aprecie um certo exagero no estilo, não sei se me faço entender...
Não o esqueça nas suas 'ephemerides'...
EliminarFui à minha bíblia, evangelhos de António José Saraiva e Óscar Lopes, e não encontrei nenhum versículo sobre este autor. Mas fico satisfeito por saber de mais um da “gândara”. Não é só o Carlos de Oliveira de CASA DA DUNA e FINISTERRA.
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