Conto de um naturalismo já tardio, mas nem por isso mais artificioso, com fatal e esperável desenlace. Gosto do ritmo da prosa, períodos curtos, jornalísticos. Muito boa a descrição do brutal, mas pacificado, Manuel da Cruz.
Maria
Júlia acordou
em sobressalto. O coração batia-lhe com força. Tinha a testa
inundada de suor e frio. A boca sabia-lhe a sangue. Fez um esforço
intelectual para reconhecer onde estava. Na escuridão, sentou-se na
cama, escutou, tacteou. As suas mãos encontraram uma massa morna,
gelatinosa, arquejante. Era um homem. Era o seu companheiro de acaso
naquela noite. Na torre de S. Paulo bateram as três da madrugada. Um
cheiro acre a palha e a bafo sufocou-a. Dormia, mais uma vez, na
hospedaria da Rua do Carvalho, tão conhecida já dos seus dois anos
de miséria. O calor viscoso daquele corpo fê-la estremecer; sentiu
crispar-se-lhe a pele num movimento instintivo de repugnância. Quem
seria aquele homem? Mal tivera tempo de o ver. Deixara-lhe a vaga
impressão dum casacão amarelo, duma voz rouca, duma barba hirsuta e
grisalha, duns braços possantes que a tinham sacudido, apertado,
calcado. Ficou uns minutos na treva, a ouvi-lo respirar. Era o ronco
brutal e pacífico dum animal que dorme. Imóvel, a respiração
quase suspensa, Maria Júlia esperou, com a resignação das
abandonadas, que clareasse a manhã. Os lençóis de estopa
ardiam-lhe na pele. Zumbiam-lhe os ouvidos. Quis adormecer. Não
pôde. Passavam-lhe pela cabeça, num tropel, os horrores da sua vida
inteira. Reviveu toda a sua infância aos pontapés; o abandono, o
asilo, o hospital, a fome; a mãe morta, com as veias abertas, numa
poça de sangue; o pai embarcado para o Brasil quando ela tinha sete
anos; os vizinhos a gritarem-lhe no pátio: -- «Manuel da Cruz,
tenha dó da criança, que é sua filha!»; -- e na escuridão, na
imobilidade, no silêncio, adivinhando cada vez mais vivo, mais
mordente o calor daquele corpo desconhecido, Maria Júlia sentia as
lágrimas a escaldarem-lhe a cara, o peito a arquejar-lhe com força,
e toda a cama tremia já do arranco dos seus soluços. A obscuridade
oprimia-a; a cabeça andava-lhe à roda; vacilou, numa vertigem;
acendeu a luz. O homem dormia serenamente, de costas, a barba
empastada de suor, o arcaboiço largo arfando numa camisola velha de
mescla azul, a mão direita espalmada sobre o peito. Maria Júlia
levantou a vela, debruçou-se, observou-o -- estremeceu. Os olhos
fixaram-se-lhe, redondos de pavor, naquela mão espessa, maciça,
enorme, queimada de tabaco, eriçada de pêlos ruivos, onde brilhava
um anel de prata. Cambaleou. Dominou-se, para não gritar. Tinha
conhecido, na sua infância, umas mãos assim. A tremer, aproximou a
luz da cara do homem -- e olhou-o, e fitou-o ansiosamente. Uma
expressão de dúvida horrível crispou-lhe as feições. Seria ele?
Não seria ele? Num lampejo, pensou em tudo -- em sacudi-lo, em
acordá-lo, em fugir, em gritar, em esmigalhar a cabeça de encontro
às paredes. Num esforço de todas as suas reminiscências infantis,
olhou ainda, uma vez mais, aquela mão musculosa, ruiva, felpuda,
possante como uma pata de fera. Queria saber, queria ter a certeza.
Atirou-se para os pés da cama. O sangue ardia-lhe nas faces.
Perdida, ofegante, travou das roupas do homem -- revolveu-as,
rebuscou-as, despedaçou-as. Achou uma carta, um sobrescrito com um
nome. Abriu os olhos, fitou esse papel mudo onde estava escrita a sua
sentença. Não sabia ler. Numa angústia, num desespero, sustendo a
respiração, calçou-se, vestiu-se, atou o lenço, embrulhou-se no
xaile -- e, com os dedos fincados na carta, desceu a escada de
roldão. Era madrugada. Uma lufada de ar fresco bateu-lhe na cara. Na
rua, a luz azulada da manhã alastrava como uma névoa. Maria Júlia
correu a um polícia, que cabeceava encostada a um candeeiro ainda
aceso, e pálida, opressa, mal podendo falar, pediu-lhe que lesse o
nome escrito naquele papel. O guarda encarou-a, viu a carta e leu:
--
Manuel da Cruz.
Diante
dele, Maria
Júlia caiu sem um grito, como um corpo morto.
De Mulheres (1916); antologiado por João Pedro de Andrade em Os Melhores Contos Portugueses, Lisboa, Portugália, 1959, pp. 79-83.
Inquieta, causa dó, incomoda; finalmente, repugna.
ResponderEliminarA mim começou a repugnar logo que cheguei à "massa morna, gelatinosa, arquejante"... Depois foi um crescendo de lástima e comiseração.
ResponderEliminarLiterariamente, gostei, mas não me parece conto par figurar numa antologia.