27 de abril de 2020

leitura em tempo de Covid-19 - «As mãos», de Júlio Dantas

Conto de um naturalismo já tardio, mas nem por isso mais artificioso, com fatal e esperável desenlace. Gosto do ritmo da prosa, períodos curtos, jornalísticos. Muito boa a descrição do brutal, mas pacificado, Manuel da Cruz.

Maria Júlia acordou em sobressalto. O coração batia-lhe com força. Tinha a testa inundada de suor e frio. A boca sabia-lhe a sangue. Fez um esforço intelectual para reconhecer onde estava. Na escuridão, sentou-se na cama, escutou, tacteou. As suas mãos encontraram uma massa morna, gelatinosa, arquejante. Era um homem. Era o seu companheiro de acaso naquela noite. Na torre de S. Paulo bateram as três da madrugada. Um cheiro acre a palha e a bafo sufocou-a. Dormia, mais uma vez, na hospedaria da Rua do Carvalho, tão conhecida já dos seus dois anos de miséria. O calor viscoso daquele corpo fê-la estremecer; sentiu crispar-se-lhe a pele num movimento instintivo de repugnância. Quem seria aquele homem? Mal tivera tempo de o ver. Deixara-lhe a vaga impressão dum casacão amarelo, duma voz rouca, duma barba hirsuta e grisalha, duns braços possantes que a tinham sacudido, apertado, calcado. Ficou uns minutos na treva, a ouvi-lo respirar. Era o ronco brutal e pacífico dum animal que dorme. Imóvel, a respiração quase suspensa, Maria Júlia esperou, com a resignação das abandonadas, que clareasse a manhã. Os lençóis de estopa ardiam-lhe na pele. Zumbiam-lhe os ouvidos. Quis adormecer. Não pôde. Passavam-lhe pela cabeça, num tropel, os horrores da sua vida inteira. Reviveu toda a sua infância aos pontapés; o abandono, o asilo, o hospital, a fome; a mãe morta, com as veias abertas, numa poça de sangue; o pai embarcado para o Brasil quando ela tinha sete anos; os vizinhos a gritarem-lhe no pátio: -- «Manuel da Cruz, tenha dó da criança, que é sua filha!»; -- e na escuridão, na imobilidade, no silêncio, adivinhando cada vez mais vivo, mais mordente o calor daquele corpo desconhecido, Maria Júlia sentia as lágrimas a escaldarem-lhe a cara, o peito a arquejar-lhe com força, e toda a cama tremia já do arranco dos seus soluços. A obscuridade oprimia-a; a cabeça andava-lhe à roda; vacilou, numa vertigem; acendeu a luz. O homem dormia serenamente, de costas, a barba empastada de suor, o arcaboiço largo arfando numa camisola velha de mescla azul, a mão direita espalmada sobre o peito. Maria Júlia levantou a vela, debruçou-se, observou-o -- estremeceu. Os olhos fixaram-se-lhe, redondos de pavor, naquela mão espessa, maciça, enorme, queimada de tabaco, eriçada de pêlos ruivos, onde brilhava um anel de prata. Cambaleou. Dominou-se, para não gritar. Tinha conhecido, na sua infância, umas mãos assim. A tremer, aproximou a luz da cara do homem -- e olhou-o, e fitou-o ansiosamente. Uma expressão de dúvida horrível crispou-lhe as feições. Seria ele? Não seria ele? Num lampejo, pensou em tudo -- em sacudi-lo, em acordá-lo, em fugir, em gritar, em esmigalhar a cabeça de encontro às paredes. Num esforço de todas as suas reminiscências infantis, olhou ainda, uma vez mais, aquela mão musculosa, ruiva, felpuda, possante como uma pata de fera. Queria saber, queria ter a certeza. Atirou-se para os pés da cama. O sangue ardia-lhe nas faces. Perdida, ofegante, travou das roupas do homem -- revolveu-as, rebuscou-as, despedaçou-as. Achou uma carta, um sobrescrito com um nome. Abriu os olhos, fitou esse papel mudo onde estava escrita a sua sentença. Não sabia ler. Numa angústia, num desespero, sustendo a respiração, calçou-se, vestiu-se, atou o lenço, embrulhou-se no xaile -- e, com os dedos fincados na carta, desceu a escada de roldão. Era madrugada. Uma lufada de ar fresco bateu-lhe na cara. Na rua, a luz azulada da manhã alastrava como uma névoa. Maria Júlia correu a um polícia, que cabeceava encostada a um candeeiro ainda aceso, e pálida, opressa, mal podendo falar, pediu-lhe que lesse o nome escrito naquele papel. O guarda encarou-a, viu a carta e leu:
-- Manuel da Cruz.
Diante dele, Maria Júlia caiu sem um grito, como um corpo morto.

De
Mulheres (1916); antologiado por João Pedro de Andrade em Os Melhores Contos Portugueses, Lisboa, Portugália, 1959, pp. 79-83.




2 comentários:

  1. Inquieta, causa dó, incomoda; finalmente, repugna.

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  2. A mim começou a repugnar logo que cheguei à "massa morna, gelatinosa, arquejante"... Depois foi um crescendo de lástima e comiseração.
    Literariamente, gostei, mas não me parece conto par figurar numa antologia.

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