27 de outubro de 2020

as aberturas das NOVELAS ERÓTICAS, de M. Teixeira-Gomes (1935)



«Deus ex machina». «O Inverno de 1890 foi dos mais ásperos que flagelaram a Europa durante o século findo, e na Holanda, então -- onde eu o passei quase todo --, país relativamente temperado e malìssimamente preparado para as baixas temperaturas, morria-se de frio.»

«A cigana (Carta a António Patrício)». «Hammamet, Dezembro, 1930. / Meu caro amigo: / Com aquela mesma mulher cuja presença, anos depois de nos separarmos para sempre, adivinhei, "senti", num recinto imerso em profundas trevas e cheio de gente; e logo, porque fugi para a não ver, me sugeriu a explicação do mito de Orfeu e Eurídice; com essa mesma mulher, durante os nossos longos e atormentados amores, deu-se um caso de telepatia tão raro, que merece realmente ser arquivado.»

«Margareta». «Em matéria de viagens fui sempre, por instinto e reflexão, refractário a programas; contudo, na minha primeira ida a Itália, reconhecendo a necessidade de visitar com certo método país tão incomparável e infinitamente variado na paisagem e na arte, delineei um plano que me tolhesse as turbulências juvenis, sopeando-me a irrebatível mania das digressões, e executei-o sem repugnância nem arrependimento.»

«Cordélia». «As minhas relações com gente da Catalunha datam da infância, graças a uns negociantes de cortiça, de S. Feliú de Guixols, que se estabeleceram na minha terra e de que ainda hoje lá existe descendência.»

«?». «O meu quarto na hospedaria Fra Giaccomo, em Smirna, era uma gaiola de vidro suspensa sobre o mar, e isso concorreu muito para que eu aí me demorasse mais do que projectara.»

«O sítio da mulher morta». «Já totalmente impossibilitados de trabalhar, os Elisiários, meus velhos caseiros dos Pegos Verdes, tinham abandonado a propriedade recolhendo-se a um casebre que possuíam na povoação vizinha, a Figueira.»

M. Teixeira-Gomes (1860-1941), Novelas Eróticas [1935], Lisboa, Relógio d'Água, 2012

8 de outubro de 2020

"Ressuscitando" Beldemónio



Em leituras investigantes, dei comigo a ler um livro interessantíssimo de Emídio Navarro, descrevendo um passeio científico, promovido pelo doutor Sousa Martins, à Serra da Estrela, e, entre muitas curiosidades e pormenores, dei com o seguinte trecho, que me permito transcrever, atualizando a grafia de 1884.

«... Por baixo do tal quadro havia algumas fotografias. - De quem é este retrato? perguntei admirado, apontando para uma delas. - É de Beldemónio; é de meu filho, respondeu o pobre homem com um suspiro, que parecia traduzir, em partes iguais, um misto de ternura e de mágoa. Uma natural delicadeza nos proibiu de investigar e profundar a significação desse suspiro, contentando-nos em saber, que vive em Gouveia o pai de um dos moços mais esperançosos da nossa literatura, estilista de buril tão delicado e mimoso, como vigoroso e firme...

... E aí está o segredo de Gouveia. Ficámos sabendo, que vive em Gouveia o pai de um dos nossos mais distintos escritores, e que o pai rendilha quadros de canudinhos de papel com tanta perfeição, como o filho rendilha períodos harmoniosos. O pai chama-se Vitorino Lobo Correia de Barros, e o filho assina-se Barros Lobo, e usa no jornalismo o pseudónimo de Beldemónio...»

Se lhe abri o apetite, lamento informar que o livro se tornou uma raridade, mas espero que, a curto prazo, o possa encontrar na Bibliotrónica Portuguesa... sem papel.