30 de dezembro de 2020

capismo


 Primeira edição portuguesa de O Mistério da Grande Pirâmide,
tomo I -- O Papiro de Máneton, Lisboa, Verbo, 1969
(estreia na revista Tintin belga, em 1950)

22 de dezembro de 2020

ALGARVE (Sophia de Mello Breyner Andresen)

 1

A luz mais que pura

Sobre a terra seca


2

Eu quero o canto o ar a anémona a medusa

O recorte das pedras sobre o mar


3

Um homem sobe o monte desenhando

A tarde transparente das aranhas


4

A luz mais que pura

Quebra a sua lança


Livro Sexto (1962), 9.ª ed. , Porto, Assírio & Alvim, 2014, p.25,

16 de novembro de 2020


 

CAMINHO DA MANHÃ

"Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada sobre os teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta  e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor-de-prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem no pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre ma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada. Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível"

De como uma penosa ida ao mercado de uma cidade costeira e decrépita numa manhã de sol escaldante se transfigura numa belíssima peça de prosa lírica. 

FF

13 de novembro de 2020

o início de O LEOPARDO

 «Nunc et in hora mortis. Amen.» Tomasi di Lampedusa, O Leopardo [1958], tradução de Rui Cabeçadas, lisboa, Círculo de Leitores, 1987. p. 7.


9 de novembro de 2020

as aberturas de CORES, de Ruben A. (1960)

«Branca». «D. Branca morava no Porto e sofria, por vezes, de chiliques inofensivos.»

«Roxo». «Tinha os olhos roxos, de vidente.»

«Amarelo». «Findo o espectáculo, em toda assistência se notava um contentamento pouco expressivo.»

«Azul». «A transfusão de sangue tinha operado o seu milagre -- realmente o sangue azul corria-lhe nas veias em caudal abundante, até mesmo para um bom aproveitamento sanguíneo eléctrico.»

«Pardos». «Os Pardos viviam fora da cidade.»

«Vermelho». «Todas as vezes que entrava numa sala onde estava gente ele fazia-se vermelho.»

«Preto». «A morte do Preto começava na terça-feira».

«Verde». «Foi gratuitamente e por acaso que estando ontem na Ribeira das Naus a olhar para um Tejo verde me espantei a trouxe-mouxe.»

Ruben A. (1920-1975), Cores, 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1989

27 de outubro de 2020

as aberturas das NOVELAS ERÓTICAS, de M. Teixeira-Gomes (1935)



«Deus ex machina». «O Inverno de 1890 foi dos mais ásperos que flagelaram a Europa durante o século findo, e na Holanda, então -- onde eu o passei quase todo --, país relativamente temperado e malìssimamente preparado para as baixas temperaturas, morria-se de frio.»

«A cigana (Carta a António Patrício)». «Hammamet, Dezembro, 1930. / Meu caro amigo: / Com aquela mesma mulher cuja presença, anos depois de nos separarmos para sempre, adivinhei, "senti", num recinto imerso em profundas trevas e cheio de gente; e logo, porque fugi para a não ver, me sugeriu a explicação do mito de Orfeu e Eurídice; com essa mesma mulher, durante os nossos longos e atormentados amores, deu-se um caso de telepatia tão raro, que merece realmente ser arquivado.»

«Margareta». «Em matéria de viagens fui sempre, por instinto e reflexão, refractário a programas; contudo, na minha primeira ida a Itália, reconhecendo a necessidade de visitar com certo método país tão incomparável e infinitamente variado na paisagem e na arte, delineei um plano que me tolhesse as turbulências juvenis, sopeando-me a irrebatível mania das digressões, e executei-o sem repugnância nem arrependimento.»

«Cordélia». «As minhas relações com gente da Catalunha datam da infância, graças a uns negociantes de cortiça, de S. Feliú de Guixols, que se estabeleceram na minha terra e de que ainda hoje lá existe descendência.»

«?». «O meu quarto na hospedaria Fra Giaccomo, em Smirna, era uma gaiola de vidro suspensa sobre o mar, e isso concorreu muito para que eu aí me demorasse mais do que projectara.»

«O sítio da mulher morta». «Já totalmente impossibilitados de trabalhar, os Elisiários, meus velhos caseiros dos Pegos Verdes, tinham abandonado a propriedade recolhendo-se a um casebre que possuíam na povoação vizinha, a Figueira.»

M. Teixeira-Gomes (1860-1941), Novelas Eróticas [1935], Lisboa, Relógio d'Água, 2012

8 de outubro de 2020

"Ressuscitando" Beldemónio



Em leituras investigantes, dei comigo a ler um livro interessantíssimo de Emídio Navarro, descrevendo um passeio científico, promovido pelo doutor Sousa Martins, à Serra da Estrela, e, entre muitas curiosidades e pormenores, dei com o seguinte trecho, que me permito transcrever, atualizando a grafia de 1884.

«... Por baixo do tal quadro havia algumas fotografias. - De quem é este retrato? perguntei admirado, apontando para uma delas. - É de Beldemónio; é de meu filho, respondeu o pobre homem com um suspiro, que parecia traduzir, em partes iguais, um misto de ternura e de mágoa. Uma natural delicadeza nos proibiu de investigar e profundar a significação desse suspiro, contentando-nos em saber, que vive em Gouveia o pai de um dos moços mais esperançosos da nossa literatura, estilista de buril tão delicado e mimoso, como vigoroso e firme...

... E aí está o segredo de Gouveia. Ficámos sabendo, que vive em Gouveia o pai de um dos nossos mais distintos escritores, e que o pai rendilha quadros de canudinhos de papel com tanta perfeição, como o filho rendilha períodos harmoniosos. O pai chama-se Vitorino Lobo Correia de Barros, e o filho assina-se Barros Lobo, e usa no jornalismo o pseudónimo de Beldemónio...»

Se lhe abri o apetite, lamento informar que o livro se tornou uma raridade, mas espero que, a curto prazo, o possa encontrar na Bibliotrónica Portuguesa... sem papel.

25 de setembro de 2020

O LEOPARDO

 UM MONUMENTO EM FORMA DE LIVRO!

Leiam, leiam, mas devagar, que tem muitas calorias...




"Começava o dia; aquele pouco de luz que conseguia atravessar a colcha de nuvens era de novo impedido pela sujidade imemorial do postigo. Chevalley ia sozinho; no meio de choques e safanões, molhou de saliva a ponta do indicador, e limpou o vidro pelo tamanho de um olho. Espreitou; à sua frente, sob a luz de cinzas, a paisagem dava solavancos, irredimível." 



13 de setembro de 2020

EPHEMERIDES

 13 DE SETEMBRO DE 1885 (135 ANOS)

AQUILINO RIBEIRO





"Para que não desse voltas ao estômago do senhor alferes, sempre se havia de desencantar uma pestana de bacalhau e cibo de pão. E, graças, aquilo eram terras no calcanhar do mundo, que viviam ainda na era do rei que rabiou."

(Andam Faunos Pelos Bosques)

7 de setembro de 2020

100 Cartas a Ferreira de Castro - uma promessa

 Quando nos deliciámos com este livro que o Mestre Ricardo deu à leitura, deixei a intenção de pesquisar quais dos livros, dos autores nele citados, havia disponíveis para consulta digital.

Para além de O Drama da Sombra, do nosso padroeiro, vou organizar dois grupos: os autores com os livros citados nas 100 Cartas, além de outros, e os correspondentes de Ferreira de Castro com livros disponíveis na internet.

De Júlio Dantas, Nada. João Lúcio de Azevedo deixou O Marquês de Pombal e a sua Época, Evolução do Sebastianismo, História dos Cristãos-Novos Portugueses. Aquilino Ribeiro - Jardim das Tormentas e A Via Sinuosa. Manuel Teixeira-Gomes com Inventário de Julho e Agosto Azul. Mau Tempo no Canal de Vitorino de Nemésio. De António Botto, Canções. Manuel Ribeiro enriquece-nos com A Catedral, A Planície Heróica e O Deserto. De Rocha Martins, A Paixão de Camilo (Ana Plácido). Jaime Cortesão deixa-nos com A Morte da Águia, Memórias da Grande Guerra e A Expedição de Pedro Álvares Cabral.

Dos que mereceram a honra de escreverem a Ferreira de Castro e serem selecionados para as 100 Cartas, com obra disponível, refiro: Raúl Brandão, João Grave, Augusto de Castro, Delfim Guimarães, Fidelino de Figueiredo, Raúl Proença, Augusto Casimiro, João de Barros, Pinto Quartim, Henrique de Barros, Egas Moniz, António José Saraiva, Luís de Almeida Braga, Manuel Ferreira, Álvaro Salema, Hernâni Cidade e Mário Sacramento.

Deixo-lhe a pista deste tesouro em https://bibliotronicaportuguesa.pt/livronicos-na-internet/  e, se por acaso se fatigou com a leitura, pense na labuta que tive para lhe trazer tudo prontinho para consulta e leitura livre e agradável.

o início de O RIO TRISTE

«No dia 14 de Dezembro de 1965, nesta cidade de Lisboa, um homem saiu cedo de casa e já não voltou.»  Fernando Namora, O Rio Triste [1982] , 6.ª ed., Amadora, Livraria Bertrand, 1983, p.7. 

12 de agosto de 2020

 EPHEMERIDES

12 DE AGOSTO DE 1907 (113 ANOS)
MIGUEL TORGA





LÍRICA
No meu jardim aberto ao sol da vida,
Faltavas tu, humana flor da infância
Que não tive...
E o que revive 
Agora
À volta da candura
Do teu rosto!
O recuado Agosto 
Em que nasci
Parece o recomeço
Doutro destino:
Este, de ser menino
Ao pé de ti...

28 de julho de 2020

De O DESERTO, com saudades

Férias em ambiente de paz e a ânsia de reler tudo o que me passou pelos olhos em anos mais inexperientes, levou-me a pegar em livro antigo de Manuel Ribeiro, O Deserto.
A primeira surpresa foi deparar com dedicatória de 1929 a Ruben de Carvalho. Nos meus arquivos de memória só consegui aceder a um homónimo que não existia nesta data; ainda tentei descobrir algum ascendente, mas não consegui.
Deixo o desafio para os meus confrades mais sabedores.
Depois a leitura, conhecendo eu o percurso de Manuel Ribeiro, desde as utopias anarcossindicalistas, às imposições bolcheviques, até aos ideais de um cristianismo idealista.
Faz pensar no contraste entre o que vivemos e o que poderíamos fazer da nossa vida e, se não tivesse tropeçado numa quantidade notável de "SES", iria a correr refugiar-me na Cartuxa de Miraflores, em Burgos, que já visitei com alma de turista estudioso, mas não suficientemente informado, na altura.
O convite é mesmo intenso e convincente.
Finalmente: confesso que me tenho lembrado com saudade das nossas sessões e de todos os confrades, mas, porque a edição que li é de 1922, tive um pensamento especial para aqueles que continuam a preferir sempre os AO anteriores aos posteriores.
Boas leituras.

20 de julho de 2020

EPHEMERIDES

20 DE JULHO DE 1304 (716 ANOS)

FRANCESCO PETRARCA






"Nós amamos a vida não por estarmos acostumados à vida, mas por estarmos acostumados a amar. Há sempre alguma loucura no amor, mas há também sempre alguma razão na loucura"

16 de julho de 2020

EPHEMERIDES

16 DE JULHO DE 1916 (104 ANOS)

MÁRIO DIONÍSIO






"Da estação via-se a praia e o mar. A água vinha de longe, muito azul e muito lisa, e aproximava-se, cada vez menos azul e menos lisa, até espadanar em pequenos cachões que morriam na areia."

(de O Dia Cinzento e Outros Contos)

15 de julho de 2020

RUA da AMARGURA


Venho dar a conhecer aos colaboradores e visitantes d'A CURVA DOS LIVROS o meu último trabalho, esperando que a pandemia que há 5 meses praticamente nos mantém isolados uns dos outros, não tarde a desvanecer-se, permitindo uma apresentação formal e ao vivo.

Fernando Faria


 

23 de junho de 2020

Depois das NOVELAS ERÓTICAS

Se está a gostar do livro Novelas Eróticas, e quiser ler mais do que escreveu Manuel Teixeira Gomes (o escritor do Algarve), deixo-lhe o convite de deslizar por:
onde encontrará, disponíveis, Inventário de Junho (1899) e Agosto Azul (1904).
Boas leituras e cuide-se.
E não perca a próxima sessão de 3 de julho.

16 de junho de 2020

correr-se dromedário

«Em Fafe a vida estava completamente normalizada, neutra, fechada, sem qualquer interesse que não fosse o aumento do preço das vacas e a diminuição nas tarifas das pipas de vinho.» O resto corria-se dromedário na botica local em frente à casa das Almoendras.» Ruben A., «Branca», Cores [1960], 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, Lisboa, 1989, p. 18.

13 de junho de 2020

6 de junho de 2020

EPHEMERIDES

6 DE JUNHO DE 1875 (145 ANOS)

THOMAS MANN





"Todo o caminho que trilhamos pela primeira vez é muito mais longo do que o mesmo caminho quando já o conhecemos"

26 de maio de 2020

Ruben A. e Ferreira de Castro

Passam hoje cem anos sobre o nascimento de Ruben A., nome literário de Ruben Andresen Leitão, com que assinava a obra historiográfica, incidindo no século XIX, em especial na figura e no reinado de D. Pedro V. Num depoimento publicado no
, Diário Popular Popular, em 7 de Abril de 1966 -- quando se assinalava o cinquentenário da publicação do seu primeiro livro, Criminoso por Ambição -- o romancista de A Torre da Barbela traçou um eloquente retrato moral do escritor, nascido há 122 anos, completados anteontem, 24: «[…] nos raros encontros que tivemos -- eu fiquei com um pedaço da sua alma agarrada à minha fraca humanidade. / Tem a estranha qualidade em escritores portugueses -- que é a de saber admirar, mostrar ao mundo do dia a dia -- que a vida não é apenas um alguidar de lacraus onde todos se trincam sadicamente.» A esta qualidade moral, Ruben juntou outra: o exemplo da rectidão: «[…] por detrás dessas linhas [os seus romances] desenha-se uma alma fina, silhueta perfeita do homem que estimula, do ser que combate com a dignidade de quem na praça pública só tem ou segue uma conduta.»

25 de maio de 2020

EPHEMERIDES

25 DE MAIO DE 1265 (755 ANOS)

DANTE ALIGHIERI




"Quanto maior é a sede, maior é o prazer em satisfazê-la"

o mar

«Escuto o mar no seu vasto marulhar na madrugada. Olho-o intensamente na sensação fria e desértica de um naufrágio. No espaço do céu há estrelas ainda acesas.» Vergílio Ferreira, Até ao Fim, 8.ª ed., Lisboa, Bertrand Editora, 2001, p. 102.

CLUBE DE LEITURA DO MUSEU FERREIRA DE CASTRO

O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA



Ainda só cheguei ao capítulo IV e estou completamente rendido. É uma obra-prima!O capítulo III é de loucos; uma luta de (dissimulados) titãs em que cada golpe é melhor que o anterior.Obra magistral! 





"Ao subir para bordo Gabriel Syme virou-se para o embasbacado Gregory:
- Você cumpriu a sua palavra. É um homem honrado e eu agradeço-lhe. Cumpriu-a até ao mais pequeno pormenor. Houve uma coisa em especial que me prometeu logo ao princípio disto, e que de facto me proporcionou.
- Que quer dizer? - gritou o confuso Gregory. - Que lhe prometi eu?
- Uma noite muito divertida - respondeu Syme, e fez a continência militar com a bengala, enquanto o barco se afastava."

Boas leituras!

FF
  

21 de maio de 2020

a morte de uma árvore

«O machado voltou a insistir. O tronco foi-se inclinando, estalando pouco a pouco, ainda hesitante em obedecer ao desígnio dos seus algozes. E, quando, enfim, se decidiu, os galhos dos vizinhos a que se amparava e com brutalidade ia partindo, lançaram protestos mais ruidosos e aflitos do que ele próprio, que a esse apoio forçado ficou devendo o poder morrer abafadamente, como se tivesse rolado, de degrau em degrau, até à cova.» Ferreira de Castro, O Instinto Supremo [1968], 6.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1988, p.22.

12 de maio de 2020

EPHEMERIDES

12 DE MAIO DE 1840 (180 ANOS)

ALPHONSE DAUDET







"Atingir a dúvida da dúvida é o começo da certeza"

CORTE NA ALDEIA

Eu sei: um livro é um livro e, nada melhor que juntar à leitura, o toque, o revirar, o espreitar capas e badanas, o descobrir referências antes do texto, o cheiro, o aspeto de velho ou jovem...
E quando já não há?! Abdico de ler, ou aplico o rifão "do mal o menos"?
Prefiro a muleta à imobilização.
É por isso que, se quer matar o apetite que o confrade Manuel Nunes nos abriu sobre a Corte na Aldeia, e já não encontra a escrita do Francisco Rodrigues Lobo, impressa no papel, lhe deixo o seguinte caminho;

https://bibliotronicaportuguesa.pt/livronicos-na-internet/
Depois é só buscar o autor, por ordem alfabética, e ele lá estará para lhe oferecer:
Divirta-se.
J. A. Marcos Serra

5 de maio de 2020

DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA

Elogio da língua portuguesa

Francisco Rodrigues Lobo, Corte na aldeia. Lisboa: Edições Vercial, 2010

DIÁLOGO I


E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por
grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns
querem provar que é essa; antes é branda para deleitar,
grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para
pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias
mais importantes da prática e escritura. Para falar é
engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com
um certo sentimento que favorece a música; para pregar é
substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e
as sentenças; para cartas nem tem infinita cópia que dane,
nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão
florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor
das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da
boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com
veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e
assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a
pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade
da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da
Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as
vulgares, em fé de sua antiguidade. E se à língua Hebreia,
pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.

Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia (1619)

3 de maio de 2020

EPHEMERIDES

3 DE MAIO DE 1540 (480 ANOS)

FREI AGOSTINHO DA CRUZ




A NOSSA SENHORA DA ARRÁBIDA

Aqui, Senhora minha, onde soía
Cantar na minha leve mocidade
O muito que de vossa saudade
Desejei de acender nesta alma fria:

Aqui torno outra vez, Virgem Maria
Desenganado já, mais de verdade,
Pois me mostrou mundana falsidade,
Que a lágrimas comprei quem me vendia.

Conselham-me tão claros desenganos
Que comece de novo nova vida
Nesta Serra deserta, alta e fragosa;

Mas são conselhos vãos, leves, humanos,
Que vós nunca quisestes ser servida,
Senão por por amor, Virgem fermosa.


1 de maio de 2020

leitura em tempo de Covid-10 - «S. João d'Arga", de Ruben A.

Um texto muito sensorial e de grande mestria, como é apanágio do autor, cujo centenário do nascimento se celebra este mês (26 de Maio).

S. João d'Arga -- 28 de Agosto.

Há anos tinha lá uma promessa. Mais cedo, mais tarde, obrigava-me a meter pela serra acima de avanço até àqueles penhascos, irmãos do outro mundo onde pousou no encanto a capela de S. João. A festa em honra do santo de Arga é uma coisa única no país -- e é assim por muitas e variadas razões.
Este ano aventurei-me à minha promessa. Preparei o breviário. Um dia passado na montanha, noite alerta, regresso pela madrugada.
Vai-se de automóvel até S. Lourenço da Montaria, depois à pata. Daí à capela, na arga de S. João, são bem umas três horas de subidas em caminho -- é uma aventura paleolítica onde todos os minhotos vão levar o sal das promessas, ou o amor dos corações. Estão na Idade Média. Todos os anos o 28 de Agosto é corrido a carpir e a borgar naquelas alturas. Há missa procissão joelhão foguetório festeiros mordomos cidra barracas de comes comunhão vinho a rodos sermão em grande estilo. É uma romaria servida em pele e osso, sem ingredientes de V. Ex.ª ou fidalguias de Dom. Do Alto Minho vai tudo -- saem de casa à noitinha para lá estarem de madrugada. Para muitos são nove horas a pé por mau caminho, se pensarmos que a romaria é bem popular na margem esquerda do Lima -- em Mazarefes, Deocriste, Subportela, Vila Franca, Barroselas e nos contrafortes da serra de Arga, na parte ao norte que vai de Caminha a Perdes de Coura. Pedra a seguir a pedra.
À saída de S. Lourenço é uma subida enviesada entre pinheiros cabeça marrada aos pés, romeiros vestidos de animais, patas são quatro, sobe-se de gatas, voltar atrás é perder o equilíbrio. A cada aberta da Natureza chapa-se um clarão entre dois cocurutos de pinheiro; na sombra, uma mulher encostada ao pipote oferece cidra. Os sequiosos bebem. A cidra fervida, fresca, amacia as goelas emperradas. Sobe-se mais, ainda completamente embrulhado em pinheiros, raro se descortina um palmo à rota de estibordo ou bombordo, é tudo caruma, mato e uma fileira de formigas humana: para cima e para baixo, ritmo silencioso de cruzar padre-nosso de olhos magros, rezando mais ave-marias. O extraordinário é que está sempre gente a subir e a descer qualquer que seja a hora, desde o dia 28 pela madrugada do dia 29 já noite fora. Sobe-se sempre, parece uma humanidade transportada em  bandos de funicular nacional. O momento está a chegar, fora dessas montanhas de pinheiro espesso começa o planalto de pedras, pedras desde o princípio do mundo, pedras poemas, sabendo que são pedras, pedras sim. -- A luz está cinzenta, se estivesse céu limpo era um esfolar de corpos correndo riachos de suor. Chega-se ao fim do planalto e vê-se a Ribeira Lima, o alto da cidade de Viana, descortina-se Âncora com o pinhal da Gelfa de sentinela alerta. É um espectáculo cinzento ao pé, quase verde nos longes. Começa agora nova subida por melhor caminho, a cabeça vai baixa, o pensamento desloca-se para S. João de Arga -- as formigas sobem e descem em loucura penitente --, o nosso rancho aumenta-se de uma Tia  de S. Salvador da Torre e de três pequenas do Orbacém acompanhadas do maior patusco das redondezas. Sobe-se, aqui uma fonte. De água ficamos satisfeitos como diz a boa da Tia, que traz promessa anual ao santo -- e descalça é que é -- mostrar ao Santo que se tem um respeito descalçado, nada de familiaridades. O Santo é bom para os aleijões, pernas, cabeças, costelas partidas de bichos e de homens -- é Santo grande de efeitos milagrosos osteológicos. Melhor que todos os endireitas da região e mais sábio de que o da Esperança. Cá vamos subindo, sempre subindo, subindo de cabeça baixa olhando para esta pré-história tal qual. Chegamos finalmente ao alto depois de lutas e contracurvas perigosas sem resguardos. Todo o trânsito se respeita, é um trânsito religioso, penitente, de boa promessa. Cheiro o ar, abro mais as narinas viradas ao vento predominante, está leve e sem mais nada, é um ar cheio de ar onde o puro se encontra com o mais puro, vejo transparências de beliscaduras a respirarem-se melhor. O ar está o que é, e a montanha agasalha-se de mantos diáfanos de ar. Tudo é pureza transparente, pedras de musgo, pedras limpas, pedras cor de sardanisca.
Passam formigas de cestos brancos à cabeça -- merendas de frango e cabrito. Sobe-se mais, cá vai o nosso rancho acariciado pelo transporte colectivo do 29. É o 29 quem leva parte da carga. É um génio o 29. Coveiro enterrador da Junta de Freguesia de Carreço com falta de mortos lança mão dos vivos. Faz tudo, é um destes seres privilegiados como só existem em Portugal. Tem duas vacas, quatro borregas um cão e três gatos para comerem os ratos que se alimentam no curral. Trabalha como mouro desde a noite antes do dia até à noite depois do dia. Faz tudo, deita a mão a tudo, atende às crias, cuida das vacas paridas, oferece assistência. Quando tira o sargaço do mar, ninguém lhe leva a palma. No entanto, dizem os entendidos, a enterrar é que ele é mestre, faz com uma arte e rapidez que a freguesia antes de orar os responsos já está com a alma encomendada para o próximo. Venha outro morto se quer aproveitar, ele está com as mãos na massa. É das melhores almas que se habitam no Norte de Portugal. Não conheço ninguém que trabalha a enxada, o redenho e a pá dos mortos com tanta perícia, dureza e seriedade. Pedra acarinhando pedra.

Puxa mais para cima! Já levamos duas horas bem andadas de subida íngreme. Dá-me a impressão de que tenho o sangue todo nos pés. -- À volta de nós a serra de rochas, pedras, pedras a dormitar, não chegam a senti a comichão que lhe fazem estas formigas escarafunchosas. Passam mais ranchos -- estes minhotos são como gatos de sete foles. Trabalham sempre, quase não dormem no Verão e borgueiam quando os santos fazem anos. Vão a dançar e a cantar como quem chupa caramelo. Eu, de língua de fora, pareço um perdigueiro depois de ter deixado as perdizes voar para outra fraga, lá nos fundos. Ainda se sobe mais, este caminho não é para funcionários públicos nem para comerciantes estabelecidos em casas de bancos ou de latoaria, menos para ministros -- é um caminho de poetas, caminhos de pedras. Como esta gente é poeta! -- Há uma alegria própria no cantar, aberta, convidativa ao amor, granito polido pelos versos. Continua tudo cinzento, excepto as formigas e uns verdes humidados por nova fonte. Pedregulhos ancestrais escondem o resto das formigas e outros mistérios mais íntimos de promessa. A Tia conta a tragédia a toda a gente, transporta tragédia de arromba -- e às carradas. Tinha três filhos e já não tem nenhum -- fiquei com o gato, e vendo sardinha, pronto. A vida resumira-se para ela. Acabou. Cá vai connosco. Há uma mulher que passa e lhe pergunta se eu sou filho dela -- tem a sua cara, isso é que é -- e ela de lágrimas nos olhos responde: -- Os meus já lá estão -- eu não conheço este filho. «-- Olhe que ele tem as suas sobrancelhas! E a penca é por uma peninha».
«Tatá. Adeus cá vamos, o santo está à nossa espera e eu assim não me arrumo». Outro planalto, outra subida mais estreita, a serra, mais aberto o céu e a língua mais saída, mais baixa. Ali não se depara com dez reis de coisa: só o isolamento. Andamos, caminhamos sempre em frente de batida rápida no córrego semidiabo, semideus. Tudo no mesmo ritmo, tudo a palmear. Chegámos ao alto, alto que fica encostado ao céu -- céu e as narinas abriram-se entusiasmadas pelo bufar. Tudo virgem. Agora, daqui ao S. João, é uma boa meia hora a descer e lá daquele fundo já se vê a capela. Assim foi, passados cinco ou dez minutos, pela garganta do desfiladeiro, à direita, a meia altura, João de Arga estava em festa. As primeiras árvores da montanha -- oliveiras, carvalhos de uns quinhentos anos e uma grande muralha que faz pensar que a capela deve estar entremuros. À nossa volta mais formigas, no ar o fumo dos petardos a anunciarem a saída da procissão. Pedras só pedras.
A genuína promessa é descer de joelhos, desde esta primeira rocha de onde se vê a capela, até lá baixo ao altar onde está S. João. São oito a dez horas de joelhos em sangue. Passamos por várias promessas em funda penitência, de pernas e joelhos massacrados. É de meter medo o poder de sacrifício da fé. Se houvesse caminho aberto, ainda era fácil, mas assim, aos pequenos saltos de joelhos, é já do outro mundo. Avançamos de facilidade, a descida sobre S. João é bela com o regato a espelhar e o rio Minho de Santa Tecla e tudo mais ao norte. É supino. Meto a língua para dentro. Começo a dar ao rabo. Contente. A minha promessa estava cumprida, era só entrar na capela, agradecer a S. João.
Pusemos arraial na encosta, pedra ao pé de pedra. Lá fomos entre o formigueiro. A capela é mesmo viva pelas coisas de pedra colorida e pela situação escondida do altar-mor. Tem uma estátua do Santo Miguel a cutilar o Senhor Diabo que é uma maravilha. Todos entre Lima e Minho têm respeito ao Senhor Diabo, e os romeiros levam esmola ao Senhor Diabo para ele estar quietinho. Nada de obras do Diabo! O Senhor Diabo merece toda a consideração. Deitei lá umas cinco coroas para não ter nada com as iras e más disposições do Senhor Diabo.
Por cima da entrada da capela-mor há um baixo-relevo policromado representando o baptismo de S. João. De maravilha a igreja está em festa com duas bandas de música, os Atrevidos de Freamunde e a Banda Marcial do Couto da Labrega. À volta, um arame para separar os penitentes dos que já cumpriram as promessas; 379 voltas de joelhos à capela, num murmurar baixo as rezas quentes do rosário, já a contas no último terço. O padre fala, a banda toca, uns dançam, outros bebem, outros comem, outros rezam, outros dormem, outros gritam -- é um quadro estranhíssimo quase nas raias do brueghelesco. Sinto fome, uma fome viva com cheiros de salpicão a entrar nas goelas. Abanco na ravina, inclino-me a baixa o olhar sobre o rio e no espreito de uma luz quase cheia, devoro a carcaça de centeio. Rasgo a dentuça ao longo das cavidades do chouriço da Riba de Âncora, e enterro o gasganete num quartilho de branco que me chama a confessar os pecados. Os da carne são todos iguais, os cá da cachimónia é que variam de temperamento para temperamento. O que é preciso é ser-se grande perante Deus, dizia na velha capela das Amoreiras  um padre chato e resmungão que ao mundo deixou esta bela frase; -- Grande perante Deus! --, neste momento aproximo-me divinamente. Atrombo mais chego à verdade da gula e paro, sinto vaidades, devaneios a pairar ao encontro de outrora. Como se mexem os meus petardos alucinados pela crueldade do sofrimento espiritual. Não há dessas coisas em nossa terra, mais vinho, menos comida, mais pedras, é o que há juntamente com umas rezas bem a propósito para os Santos milagreiros. O que é preciso é ser-se grande perante Deus!
O dia encolhe-se, limpa-se a noite. As estrelas pirilampam-se depois do luar, as fogueiras do arraial significam mistério. Devia ser assim no tempo dos santos medievais -- estamos sentados a admirar a bacanal, na outra ravina da costa, mais aplainada, o espectáculo é de único. Ranchos por toda a parte a cantarem, a dançarem ao som da concertina do conjunto de tocadores. Um alto-falante vomita danças espaçadas, lembra estúpidos de civilização. As bandas tocam mais forte -- bebe-se agora um tinto magnífico e o fogo sobre no alto colorindo uma natureza parda de rocha. O panorama tem majestade. O povo ali não se abana de artimanhas, é um sim de fé e de borga.
Em S. João d'Arga não existem casas -- há a capela, e à volta o quartel, nome pelo qual se chama a uma barraca onde dorme a malta bem empilhada. Mas ninguém dorme -- não se pode dormir, a noite e as fogueiras altas de cada ninho de pedras raro possibilitam sono -- dançam os ranchos, bebem como sequiosos do Nordeste brasileiro, tudo bebe mais vinho e tudo come pela noite fora. Ninguém para -- vejo um embalar puro, sagrado, da gente que espera a primeira missa às cinco da manhã. Depois da comunhão tudo parte à debandada -- formam-se novamente os ranchos e ao nascer do sol o formigueiro movimenta-se de partida. Dá-se lugar a outros que vêm passar o dia 29 junto ao santo. Não durmo, olho para aquele mundo como quem mira uma reserva humana em papel selado. É tosco, primitivo, frascário, mas é puro, é português.

Páginas V, Lisboa, 1967 / Antologia, edição de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, 2009.


30 de abril de 2020

RUBEN A. - AUTOBIOGRAFIA


Em Fevereiro de 1929, o vapor “Deister”, de bandeira alemã, naufragou à entrada  do Douro. Toda a tripulação, composta por vinte e quatro homens, bem como o piloto de barra português morreram.
O naufrágio é referido por Ruben A. no primeiro capítulo do volume I da sua autobiografia – O Mundo à Minha Procura –, que a ele assistiu com oito anos de idade. O navio havia encalhado e estava à beira de se despedaçar ante a fúria do mar. As gentes desciam da cidade até à Foz para assistirem à morte anunciada. E assim se passou com o pequeno Ruben, levado pelo Sezé carpinteiro, seu guardião e companheiro da idade da inocência na quinta do Campo Alegre, propriedade da avó, em cuja casa apalaçada vivia desde que os pais tiveram de partir para o Brasil.  
Desta casa disse Sophia, prima do escritor, em poema do livro O Nome das Coisas:
«Era um dos palácios do Minotauro / – o da minha infância para mim o primeiro / Ali o túmulo cego confundia / O escuro da noite e o brilho do dia (...)»
E sobre o «túmulo cego» em que se convertera o vapor alemão, escreveu Ruben A.:
«Confuso, não percebia bem a razão do naufrágio, ignorava as forças poderosas que os elementos guardam para as horas de expiação. Havia ali uma lei da morte que eu não compreendia. Aos poucos, a chuva miudinha fez desaparecer nos longes a silhueta de sarcófago, que era a do vapor no horizonte.
«Os sinos de Lordelo desafinavam ao transmitir as mensagens de perigo que o sineiro apressadamente marcava; as mulheres da fábrica do Robes, apanhadas de surpresa à hora do caldo, decidiram avançar por Serralves abaixo, meter ao Ouro e seguir pela marginal até mesmo à Foz, onde estava a desgraça. O pequenito, que era eu, só reparava que, de tanta confusão, os pássaros se haviam escondido e que mesmo o vento não falava, a não ser pela voz dos agoirentos.»
Na biografia de Ruben A., da autoria de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, diz-se: «Este primeiro contacto com a morte, quando não tem ainda nove anos, irá forçá-lo a compreender que a tragédia não era compatível com lamentos e choros. Era necessário admiti-la, por mais absurda que ela fosse ou se apresentasse.»
Além do mais, uma tragédia que permitiu criar umas belas páginas de escrita autobiográfica e o arranque poderoso de uma autobiografia.

Nota: Ruben A. refere o nome do vapor como "Deinster" e quanto ao número de tripulantes fala de «quarenta homens» que «encomendavam a alma aos deuses revoltos do mar».

29 de abril de 2020

contorções

«Lá fora, o vento vergastava o cais da estação e fazia torvelinhos com as folhas de choupo e os papéis velhos. Escondendo as cabeças entre os ombros, os dois soldados inverteram a marcha no final da plataforma e, dando o peito à ventania, regressaram dobrados num ângulo inverosímil.» João Pinto Coelho, Os Loucos da Rua Mazur, Lisboa, Leya, 2017, p. 199.

28 de abril de 2020

quadriculado

Homem dos Livros - Alfarrabista - Old Books - Livres Anciens ...«Fafe é uma terra que não se descreve num roteiro ou numa pincelada impressionista. Tem por lá tragédia de que fala o Camilo, e o Zé do Telhado funcionava lá nas redondezas. Em Fafe há sempre umas quadrilhas que dão febra e grandeza ao quadriculado do baixo Minho.» Ruben A., «Branca», Cores [1960], 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, Lisboa, 1989, p. 14.

27 de abril de 2020

leitura em tempo de Covid-19 - «As mãos», de Júlio Dantas

Conto de um naturalismo já tardio, mas nem por isso mais artificioso, com fatal e esperável desenlace. Gosto do ritmo da prosa, períodos curtos, jornalísticos. Muito boa a descrição do brutal, mas pacificado, Manuel da Cruz.

Maria Júlia acordou em sobressalto. O coração batia-lhe com força. Tinha a testa inundada de suor e frio. A boca sabia-lhe a sangue. Fez um esforço intelectual para reconhecer onde estava. Na escuridão, sentou-se na cama, escutou, tacteou. As suas mãos encontraram uma massa morna, gelatinosa, arquejante. Era um homem. Era o seu companheiro de acaso naquela noite. Na torre de S. Paulo bateram as três da madrugada. Um cheiro acre a palha e a bafo sufocou-a. Dormia, mais uma vez, na hospedaria da Rua do Carvalho, tão conhecida já dos seus dois anos de miséria. O calor viscoso daquele corpo fê-la estremecer; sentiu crispar-se-lhe a pele num movimento instintivo de repugnância. Quem seria aquele homem? Mal tivera tempo de o ver. Deixara-lhe a vaga impressão dum casacão amarelo, duma voz rouca, duma barba hirsuta e grisalha, duns braços possantes que a tinham sacudido, apertado, calcado. Ficou uns minutos na treva, a ouvi-lo respirar. Era o ronco brutal e pacífico dum animal que dorme. Imóvel, a respiração quase suspensa, Maria Júlia esperou, com a resignação das abandonadas, que clareasse a manhã. Os lençóis de estopa ardiam-lhe na pele. Zumbiam-lhe os ouvidos. Quis adormecer. Não pôde. Passavam-lhe pela cabeça, num tropel, os horrores da sua vida inteira. Reviveu toda a sua infância aos pontapés; o abandono, o asilo, o hospital, a fome; a mãe morta, com as veias abertas, numa poça de sangue; o pai embarcado para o Brasil quando ela tinha sete anos; os vizinhos a gritarem-lhe no pátio: -- «Manuel da Cruz, tenha dó da criança, que é sua filha!»; -- e na escuridão, na imobilidade, no silêncio, adivinhando cada vez mais vivo, mais mordente o calor daquele corpo desconhecido, Maria Júlia sentia as lágrimas a escaldarem-lhe a cara, o peito a arquejar-lhe com força, e toda a cama tremia já do arranco dos seus soluços. A obscuridade oprimia-a; a cabeça andava-lhe à roda; vacilou, numa vertigem; acendeu a luz. O homem dormia serenamente, de costas, a barba empastada de suor, o arcaboiço largo arfando numa camisola velha de mescla azul, a mão direita espalmada sobre o peito. Maria Júlia levantou a vela, debruçou-se, observou-o -- estremeceu. Os olhos fixaram-se-lhe, redondos de pavor, naquela mão espessa, maciça, enorme, queimada de tabaco, eriçada de pêlos ruivos, onde brilhava um anel de prata. Cambaleou. Dominou-se, para não gritar. Tinha conhecido, na sua infância, umas mãos assim. A tremer, aproximou a luz da cara do homem -- e olhou-o, e fitou-o ansiosamente. Uma expressão de dúvida horrível crispou-lhe as feições. Seria ele? Não seria ele? Num lampejo, pensou em tudo -- em sacudi-lo, em acordá-lo, em fugir, em gritar, em esmigalhar a cabeça de encontro às paredes. Num esforço de todas as suas reminiscências infantis, olhou ainda, uma vez mais, aquela mão musculosa, ruiva, felpuda, possante como uma pata de fera. Queria saber, queria ter a certeza. Atirou-se para os pés da cama. O sangue ardia-lhe nas faces. Perdida, ofegante, travou das roupas do homem -- revolveu-as, rebuscou-as, despedaçou-as. Achou uma carta, um sobrescrito com um nome. Abriu os olhos, fitou esse papel mudo onde estava escrita a sua sentença. Não sabia ler. Numa angústia, num desespero, sustendo a respiração, calçou-se, vestiu-se, atou o lenço, embrulhou-se no xaile -- e, com os dedos fincados na carta, desceu a escada de roldão. Era madrugada. Uma lufada de ar fresco bateu-lhe na cara. Na rua, a luz azulada da manhã alastrava como uma névoa. Maria Júlia correu a um polícia, que cabeceava encostada a um candeeiro ainda aceso, e pálida, opressa, mal podendo falar, pediu-lhe que lesse o nome escrito naquele papel. O guarda encarou-a, viu a carta e leu:
-- Manuel da Cruz.
Diante dele, Maria Júlia caiu sem um grito, como um corpo morto.

De
Mulheres (1916); antologiado por João Pedro de Andrade em Os Melhores Contos Portugueses, Lisboa, Portugália, 1959, pp. 79-83.




24 de abril de 2020

EPHEMERIDES

23 DE ABRIL DE 1564 (456 ANOS)
W. SHAKESPEARE







"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te"

23 de abril de 2020

leitura em tempo de Covid-19: uma máxima sobre a máxima, de José Bacelar

José Bacelar, um moralista à antiga e à francesa. Arte de pensar (n)o cerne, ainda hoje menos actual, pois que parecemos caminhar, nos que às Humanidades respeita, para um novo período em que o pensar se atomiza em círculos cada vez mais restritos. Como, na Idade Média, nos mosteiros.
Livro extraordinário, cuja leitura vivamente se recomenda.
José Bacelar (1900-1960), médico, ensaísta, colaborador da Seara Nova, presença  e Revista de Portugal.


«Uma máxima não pretende defender um ponto de vista ou indicar uma direcção; uma máxima constata, simplesmente. Não é pois um género actual.» (do «Prefácio»)


José Bacelar, Revisão -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana, Lisboa, Portugália Editora, 1935.