10 de janeiro de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - V

 

COLEGIAL

 

Em cima da minha mesa,

Da minha mesa de estudo,

Mesa da minha tristeza

Em que, de noite e de dia,

Rasgo as folhas, leio tudo

Desses livros em que estudo,

E me estudo,

(Eu já me estudo…)

E me estudo,

A mim,

Também,

Em cima da minha mesa,

Tenho o teu retrato, Mãe!

 

À cabeceira do leito,

Dentro dum lindo caixilho,

Tenho uma Nossa Senhora

Que venero a toda a hora…

Ai minha Nossa Senhora

Que se parece contigo,

E que tem, ao peito,

Um filho

(O que ainda é mais estranho)

Que se parece comigo,

Num retratinho,

Que tenho,

De menino pequenino…!

 

No fundo da minha mala,

Mesmo lá no fundo, a um canto,

Não lhes vá tocar alguém,

(Quem as lesse, o que entendia?

Só riria

Do que nos comove a nós…)

Já tenho três maços, Mãe,

Das cartas que tu me escreves

Desde que saí de casa…

Três maços – e nada leves! –

Atados com um retrós…

 

Se não fora eu ter-te assim,

A toda a hora,

Sempre à beirinha de mim,

(Sei agora

Que isto de a gente ser grande

Não é como se nos pinta…)

Mãe!, já teria morrido,

Ou já teria fugido,

Ou já teria bebido

Algum tinteiro de tinta!

 

--- As Encruzilhadas de Deus, 1936



9 comentários:

  1. Muito bom; e vai ter eco n'A Velha Casa, certo?

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  2. Poema autobiográfico, reflecte-se naturalmente em A Velha Casa, ciclo romanesco em que o protagonista Lelito se funde e confunde com o autor empírico. Há a imagem de uma Senhora do Ó, no vol. III, que lhe foi deixada por morte de Ricardo Abrantes (representação ficcional do poeta Afonso Duarte). Quanto à mãe (a mãe de Lelito/Régio), ela está presente na obra, em especial no episódio da sua morte, sentida e sofrida de forma excepcional pelo protagonista.

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  3. É um belo poema. Régio no meu 5⁰ ano era o último escritor da antologia, logo o mais recente já com direito a fotografia.
    Após Abril surgiu no ensino secundário uma antologia muito melhor deão nominada Verde Pino, incluia um leque a nlargado que abriu horizontes: Abelaira, Natália, Catdoso Pires, J Gomes Ferreira..
    O primeiro livro de poesia que li foi Fado de J Régio...mas não me agarrou .Não seria a leitura mais indicada para o momento, creio.

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    1. "Fado", de temática social, representou uma viragem na poesia regiana. Diz-se que foi uma resposta às críticas dos neo-realistas em relação ao subjetivismo poético da sua obra.
      Não sei se a resposta foi conseguida... No número 30 da revista do CER, prestes a sair, tenho um artigo sobre o assunto.

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    2. Caro, avise quando sair, para não ficar impune...

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  4. Ah...obrigado. Compreendo. Achei o livro muito doloroso e não aguentei. Talvez não fosse o mais indicado para mim naquele momento. Deveria preocupar-me com a poesia medieval de que tanto gosto, passar pelos clássicos cautelosamente e mais tarde Régio...

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    1. Olha. Laurindo, a minha experiência foi diferente. Na selecta literária do meu 4º ou 5º ano (escola comercial), vinha o poema "O papão", de "AS ENCRUZILHADAS DE DEUS":

      Atrás da porta, erecto e rígido, presente,
      Ele espera-me. E por isso me atrapalho,
      e vou pisar, exactamente,
      a sombra de Ele no soalho!

      - «Senhor Papão»
      (Gaguejo eu)
      «Deixe-me ir dar a minha lição!
      «Sou professor no liceu...»

      etc.

      Nunca mais me esqueci destas duas primeiras quadras. Achei logo que era um poema moderno, diferente dos outros que faziam parte da selecta. E, de facto, não estava muito enganado... :)

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  5. E eu guardo um par de meias
    Que minha Mãe me marcou
    Com três cruzinhas de linha,
    Quando a vida teceu teias,
    E de casa me levou.
    Como o seu rosto definha!
    Quando oras, quanto anseias!
    Choro quanto Ela chorou,
    Porque agora, Mãe, só tinha.

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