UMA ESPÉCIE DE PERDA
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada.
(-o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
Ingeborg Bachmann em O Tempo Aprazado: poemas (1953-1967)
Tradução de João Barrento e Judite Berkemeier
Assírio & Alvim, 1992
Creio que nunca lera um poema dela, e gostei muito.
ResponderEliminarDescobri a sua poesia no ano passado. Gostei 🙂
EliminarUma espécie de elegia. Uma perda extensa.
ResponderEliminarNão tenho certeza mas intuo que este poema poderá ter sido escrito pensando em Paul Celan. Celan e Bachmann conheceram-se em 1948. Tiveram um caso amoroso, retomado em 1952 e em 1957. Escreveram-se durante 20 anos, entre 48 e 67. Talvez "Tempo do Coração" confirme, ou não, esta minha intuição 😉
EliminarMuito belo!
ResponderEliminarSim 🙂
EliminarExcelente: ia-se aguardando a conclusão e ela chegou: perfeita.
ResponderEliminarBelo poema, sim 🙂
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