SINGULAR TEMPO PLURAL
Em outubro passado
saí à noite com a cunhada de um amigo
o que me pareceu sexualmente correto.
Tratava-se o espécime de alguém bem alinhavado
o que também me pareceu sexualmente correto.
Levei-a a jantar a um bonito restaurante
trocámos umas ideias
trocámos uns olhares
engraçámos com os pontos em comum
e tudo estava a correr bem.
Falava eu das castas e tradições
do vinho que bebíamos
quando, sentindo-lhe o bouquet
ao dar um gole em grã seigneur
o estafermo do líquido
me entrou para os pulmões, circunstância infeliz
que provocou de imediato
imponente e borrifada engasgadela
mesmo ali à frente da carinha dela
o que francamente me pareceu
sexualmente incorreto.
Mais tarde, quando já tinha
a algum custo recuperado o élan
fui com ela dar uma volta pela linha costeira.
Durante o passeio,
disse-me que estava a gostar muito
de ouvir os Roxette
o que me pareceu sexualmente correto.
Depois abordou a política,
explicou-me que já não era
mas que tinha sido daquele partido
que agora, por sinal, está bastante partido
no mau sentido do termo.
Foi logo a seguir que me falou do mar.
Disse-me que o mar, poucos quilómetros adiante
era lindo!
Eu estava já a afiambrar as ideias
e não tardava muito ia entrar naquela fase
em que nos armamos em carapau.
Mas naqueles poucos quilómetros
que faltavam para o sítio turquesa
onde o mar é lindo
o carro ficou sem bateria.
Ainda esgrimi, atrapalhado
um incómodo diálogo com o démarreur
mas o carro, pois sim, já dali não saiu
o que, convenhamos
foi de todo sexualmente incorreto.
Passou-se uma semana, um mês
sucederam-se os outubros
e, talvez pelo que se passou naquela noite -
mas creio que não -, as nossas vidas
levaram rumos diferentes.
Através do tempo,
quando levo alguém a ver
o sítio onde o mar é lindo
fico com a sensação
de que é sempre um pouco depois.
Daniel Maia-Pinto Rodrigues em A Sorte Favorece Os Rapazes
Retirado da antologia Turquesa
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Dezembro de 2019
Páginas 181 a 183
Há dias em que a sorte não favorece os rapazes. Também creio que o sítio onde o mar é turquesa não existe: é um engodo que a fragilidade masculina deveria repensar. Exposição clara, desinibida, e linguagem de boa extracção. Belo poema, et tout le reste est littérature.
ResponderEliminarApós a leitura da antologia, encontrei na introdução escrita por Rui Lage, uma breve referência à «dimensão turquesa da realidade». Introduções e prefácios ficam sempre para o fim, de forma a não sentir condicionamentos. Fiquei curiosa pelo «mar como turquesa ser um engodo que a fragilidade masculina deveria repensar». Deixas-me a pensar 🙂
EliminarHilariante. Também tenho um dele, cá na minha.
ResponderEliminarHilariante, pois 😆 Mas sinto também certa melancolia. Talvez tristeza pela não concretização de algo que ficou perdido no tempo.
EliminarOs últimos versos:
"Através do tempo
quando levo alguém a ver
o sítio onde o mar é lindo
fico com a sensação
de que é sempre um pouco depois."
Sim, muito bom.
EliminarMais um ilustre desconhecido (para mim, claro, que ando a dormir...). Causou-me um vigoroso e hilariante 'élan'.
ResponderEliminarNB: Também não me passou despercebido toque de melancolia no final.
Sorri, sorri e ri.
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