15 de julho de 2021

o início de BEHIND THE BEAUTIFUL FOREVERS*




«Era quase meia-noite, a mulher perneta estava queimada com gravidade e a polícia de Bombaim vinha buscar Abdul e o seu pai.» Katherine Boo, O Sonho de uma Outra [2010] Vida, trad.  Isabel Veríssimo, Alfragide, Rdições Asa, 2014, p. 11.


*Opto pelo título original, mais de acordo com uma poética oriental do que o português, meloso: tal como a capa, que reproduz a imagem original, muito orientada para encher o olho e puxar ao sentimento em programas de Oprah's e afins, um e outra não fazendo justiça à magnífica reportagem que este livro é.

6 de julho de 2021

CADERNOS DE SANTIAGO II

Com edição da Âncora saiu em Abril de 2021 o volume II de Cadernos de Santiago, colectânea de poetas da Madeira com objectivos que apontam  para a sua eventual  extensão a autores da região biogeográfica da Macaronésia, constituída para além da Madeira pelos arquipélagos dos Açores, Canárias e Cabo Verde.

JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS, nosso colega do Clube de Leitura, participa no volume com dez poemas sob o título Águas, Memórias.

                O conjunto poemático articula-se entre as águas do tempo e a magoada voz da memória, desde um primeiro poema, “Cabeça sobre a Relva” – que é uma arte poética no vero sentido da expressão – , até  “Lembras-te Brígida Amada,” em que o conteúdo da predicação se estabelece como súmula temática do conjunto.

Rasgadas as águas do tempo, é a infância e a juventude do predicador que afloram na matéria dos poemas. «Evocação inatingível do eterno», diz-se em “águas, memórias”, poema que dá título à participação do poeta na colectânea.

 Poemas do «tempo derramado», ou do «tempo transfigurado», do «rumor das águas» no seu incessante labor de descobrir o sentido último do que se perdeu – a praia, agora «virtual», despojada do ouro das areias; a «ânfora quebrada de água cristalina»; a casa, esse «navio de sensações» que vem «do tempo ingénuo da infância». Algumas das expressões citadas pertencem a “Tempo derramado”, poema de uma única estrofe de cinco versos em que irrompe a figura matricial da casa – a casa a que sempre se volta, se não fisicamente, pela via possível da memória.

Centrando-nos no derradeiro poema – “Lembras-te Brígida Amada,” –, diríamos que ele surpreende pela serena dolência da predicação («Embora esteja sol lá fora eu não o sinto»), pela adjectivação inesperada («lua maneirista»), pela estilística da contradição («sonhos de ouro e lama»),  pela quase-metáfora do «tanque» e das «trutas» que, de resto, surge igualmente no poema “Raras luzes”. Para além do mais, é uma canção de amor na sua exacta definição. E porque falamos de amor e de um poeta madeirense, é impossível não recordar a trágica lenda da descoberta mítica da Ilha de Madeira – os amantes Ana d´Arfet e Roberto Machim –, tal como é narrada na Epanáfora Amorosa  III, de D. Francisco Manuel de Melo.

A poesia de hoje, como a de sempre, faz-se de sedimentos da tradição oral e escrita,  e muito do que aí está nestes segundos Cadernos de Santiago  bem o demonstra.


NOTA: JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS interveio igualmente no volume Cadernos de Santiago I (Âncora Editores, Maio de 2016) com um conjunto de doze poemas intitulado A Penas Poemas.

 

 

5 de julho de 2021

o início de UMA ABELHA NA CHUVA

 


«Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passo molengão; samarra com gola de raposa; chapéu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empedrado.» Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva [1953], 22.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1984.

1 de julho de 2021

ENCHARCAR-SE DE ORVALHO...

 "O primeiro alvor da madrugada na janela do escritório, um começo de luz apenas, ainda por fixar no contorno do mundo. Como a mulher se tivesse recusado a deixá-lo entrar no quarto, passara ali a noite, encolhido no meiple de couro, com a samarra pelas pernas. Não conseguira adormecer, mas alcançara do excesso das palavras e do álcool um pouco de repouso. No entanto, doía-lhe a cabeça. A boca seca, amarga. Levantar-se e abrir a janela. Uma golada de água, a pureza fria da madrugada. A cinza da luz amontoava-se nas vidraças, mas não era possível prever se o dia chegaria ou não. Quando começava a clarear um pouco mais, a lufada de sombra varria a cinza da janela. Um desejo irreprimível de cheirar os campos molhados. Beber água, passar os dedos na casca rugosa dum pinheiro, encharcar-se de orvalho. Atravessou a casa adormecida, abriu a porta com cuidado e saiu."


(Carlos de Oliveira nasceu em 10 de Agosto de 1921 e faleceu em 1 de Julho de 1981, faz hoje 40 anos)