8 de junho de 2022

ENTREMENTES - CONVERSAS (DES)CONFINADAS (2)

Caro José,

Afinal ainda consigo escrever-te antes dos feriados. Sobre espiritismo, fenómenos mediúnicos, etc., transcrevo parte de uma entrada do diário de José Régio (estudava naquele tempo em Coimbra, tinha 23 anos):

«Coimbra, 4 de Novembro de 1924

 – Tenho passado noites horríveis.

Assisti (e colaborei) a algumas sessões de espiritismo, entre rapazes. O que a eles passou quase indiferente perturbou-me a mim em excesso. Invocámos numa delas o espírito de António Nobre, que disse querer dirigir-se a mim. Transcrevo algumas perguntas:


Eu – Tens alguma coisa a dizer-me?


– Só.


  Que queres tu dizer? referes-te a mim, ou a ti?

            – A ti.

– Sabes porque gosto tanto de ti?

– Só.

– Queres dizer que sou como tu?

– Sim.

(…)

– Qual é a poesia do teu livro que preferes?

– Todas.

– Qual é o poeta do teu tempo que mais amaste?

– Eu.

– Quem mora agora na Torre de Anto?

– Eu

etc.


Como se vê, são respostas dignas do meu Príncipe. Este interrogatório chocou-me até às lágrimas. Deixei de assistir a estas sessões, porque elas me perturbavam extraordinariamente:  Tive pesadelos e terrores nocturnos (…)»*

Pela minha parte, imaginava um espírito de António Nobre loquaz, no género de “Lusitânia no Bairro Latino” e “Males de Anto”, mas afinal não...

Votos de bom fim-de-semana e até à próxima.

M.

 * JOSÉ RÉGIO, Páginas do Diário Íntimo, Obra Completa, Lisboa, IN-CM, 2004.

 

9 comentários:

  1. Já não me lembrava dessa passagem do diário; mas, por falar em espiritismo, o Ferreira de Castro, em 1917 (19 anos) escrevia assim, em Belém do Pará, sobre as sessões espíritas, então muito na moda.:

    «Hoje a vontade de ser esotérico passou; e “ranzinza” no meu materialismo, parecem-me frioleiras as palestras que sobre este assunto mantêm […] no Pará-Chic. Parecem-me frioleiras e ainda o ano passado escutava-as atencioso. Ah! Ah! Ah!»

    Abraço

    R.

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  2. Parece que a literatura retrata alguns desses episódios... Permitam que junte a Carta que Fernando Pessoa escreveu à Tia Anica, em 24 de junho de 1916: http://arquivopessoa.net/textos/531
    Uma faceta pessoana muito pouco conhecida. Abraços.

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    1. É a do espelho? Obrigado.

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    2. Sim, é a do espelho, e também da escrita automática mediúnica. De escrita automática, aprecio sobretudo a dos surrealistas... O Eça tem um texto engraçado sobre espiritismo nas "Notas Contemporâneas". Se puder vá lá ver, é de 1893.

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    3. O "anónimo" destes 2 comentários sou eu mesmo, M. Nunes :)

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  3. Azar do José Régio; azar do Ferreira de Castro; azar nosso, leitores. Se eles tivessem estado nas sessõezinhas organizadas por um curioso analítico (que não pretendia vender gato por lebre a ninguém), com amigos que mal sabiam ao que iam, numa terrinha pequena, há alguns anos, teriam escrito relatos objetivos muito mais eloquentes sobre a matéria, e todos nós, leitores, estaríamos mais confortavelmente predispostos... embora, pelo que pode deduzir-se, eles, os escritores, pouco soubessem sobre o assunto.
    O fenómeno existe: garanto. O grupo das explicações admissíveis é outra questão.
    Bem hajam pela partilha e pelo espevitar de ideias e memórias.
    J. A. Marcos Serra

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    1. Caro, não tenho grandes dúvidas de que o fenómeno existe, esse e outros; no entanto, não lhe atribuo nenhuma causa sobrenatural, antes fenómenos físicos (ponha aí "energias", se quiser) que ainda não dominamos. Nada, portanto, que abale a minha descrença no divino que não seja de origem humana: Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Schubert, Tchaikovsky...) Parabéns pelo sacana do livros, que não o consegui laragr. Até o levei para a praia... Abraço

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