4 de abril de 2020

- 100 cartas a Ferreira de Castro - XL


Meus amigos do Clube de Leitura

Tenho que admitir, que nestes tempos de pandemia as minhas leituras têm andado bastante....direccionadas!  Mas isso pode ter uma explicação, como me escrevia o meu irmão há uns dias já do seu reduto em autoisolamento. E porque é de cartas que tratamos agora, passo a transcrever: “ Agora que virámos todos filósofos e procuramos o sentido da vida, versão Monty Python, não há como seguir os que já pensaram a coisa. «Sobre o futuro todos se enganam. O homem não pode estar seguro que do momento presente. Mas será isto verdade? Pode verdadeiramente conhecer o presente? Terá a capacidade de julgar? De certeza que não. Como é que aquele que não pode conhecer o futuro, poderia conhecer o sentido do presente? Se não sabemos a que futuro o presente nos conduz, como podemos dizer que este presente é bom ou mau, merecendo a nossa adesão, a nossa desconfiança ou o nosso ódio?» Milan Kundera”

             Sim, tenho andado à procura do sentido da vida e a reler muito devagarinho quem já pensou as coisas .“ (...) nesse momento, o ruir da sua coragem, da sua vontade e da sua paciência era tão brusco que lhes parecia que não poderiam jamais sair desse precipício. Então sujeitaram-se a não pensar no termo da sua clausura, a não voltar o olhar para o futuro e a conservar sempre os olhos baixos.  Mas, naturalmente, esta prudência, esta maneira de enganar a dor, de bater em retirada para recusar o combate, eram mal recompensadas. Ao mesmo tempo que evitavam este abatimento que não queriam por nenhum preço, privavam-se com efeito, desses momentos bastantes frequentes em que podiam esquecer a peste nas imagens da sua futura reunião. E, assim, encalhados a meia distância entre estes abismos e estes cumes, mais flutuavam do que viviam, abandonados a dias sem sentido e a recordações estéreis, sombras errantes que só poderiam ter ganho força aceitando criar raízes na terra da sua dor.
             Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados que vivem com uma memória que para nada lhes serve. Este próprio passado em que eles reflectiam sem cessar tinha apenas o gosto do arrependimento (...) Impacientes do presente, inimigos do passado e privados do futuro, parecíamo-nos assim bastante com aqueles que a justiça ou o ódio humano fazem viver atrás das grades. Para terminar, o único meio de escapar a estas férias insuportáveis era, pela imaginação, fazer andar de novo os comboios e encher as horas com o tinir repetido de uma campainha, contudo, obstinadamente silenciosa” A. Camus, A Peste, Livros do Brasil, 2016, pp.69-70
            
           Agora, andando eu tão pensativamente atarefada com questões filosóficas, tinha para ler as 100 Cartas a Ferreira de Castro que tão bem o Ricardo António Alves, seleccionou, comentou, anotou e, melhor ainda, nos ofereceu!

           Ao folhear, tropecei  numa e fiquei-me logo por ali. “Muito obrigado pela sua carta e pelos seus livros (...), os livros vieram-me lembrar aquele período da minha vida em que há muito de descoberta, de revelação e ao mesmo tempo de mistério (...) Nessa altura eu tinha uma sede de conhecimento enorme, e lia tudo, com uma pressa incrível. (Só mais tarde aprendi que um livro se deve ler devagar, com calma, para conseguirmos tocar, quando a inteligência e a sensibilidade o permitam, o mundo que o autor nos oferece). Durante anos li muitos livros, esqueci outros e reli alguns. Tive prazer em encontrar de novo o Pavel, a Ana Karenine, o Manuel [da] Bouça e o Juvenal, desta vez com mais compreensão da minha parte e já na companhia de Jean Christophe, de João, de Sérgio, Jim, Robert Jordane até mesmo de Lewis Alison.
Durante esses anos aprendi também que, apesar da desgraça comum, nem todos os homens tinham boa-vontade, dignidade e compreensão. E mais – que grande parte dos artistas tinham em si uma secura, uma desumanidade e um desenraizamento tal, que fariam estremecer as pedras, se os seus dedos as tocassem.
   Aqui tem, Ferreira de Castro, um dos motivos da minha admiração por si. Sei que v. lutou sempre por uma dignidade humana e para a construção dum mundo melhor. Como intelectual v. esteve sempre ao lado dos que queriam gritar e o seu grito não passava da garganta. Por isso os seus homens da Selva, dos Emigrantes, da Terra Fria, são vivos, são autênticos. Por isso nós precisamos de homens como V.” Carta de Eugénio de Andrade, Castelo Viegas, Abril 46 

           Imaginando que estou ao pé de vós na nossa tertúlia mensal, pergunto-vos: quem seriam essa "grande parte dos artistas" que E. de A., refere? E a mim, pergunto-me: Se eventualmente os li, será que com esse conhecimento os releria com um sentimento diferente? (estou a lembrar-me do O. Pamuk, n´O Romancista Ingénuo e o Sentimental...)

         Ricardo, confirma-se que o personagem Lewis Alison, poderia ser de um livro de  Charles Langbridge Morgan (1894-1958)? Em A Fonte, publicado em 1932, Lewis A. é um oficial inglês que está preso num castelo holandês durante a Primeira Guerra Mundial, para quem a prisão significa, de algum modo, a liberdade de se poder dedicar somente à leitura, meditação e a um livro que ele próprio está escrevendo.  Charles Morgan, foi ele próprio oficial subalterno na Divisão Naval do Churchill, enviada para a defesa de Antuérpia e esteve prisioneiro na Holanda.

Um abraço saudoso,
Sara Fonseca Ferreira

2 comentários:

  1. Viva, Sara
    Obrigado pelas suas palavras.
    Também eu fui ler «A Peste», que já me fazia caretas da estante desde 1993... Curiosamente, era um dos que tinha levado para férias no ano passado, mas como tenho sempre mais olhos que barriga, pelo menos em matéria de livros, não chegara ainda a sua vez -- foi agora.
    Quanto ao Charles Morgan, é possível; ele era bastante lido nessa altura, mas agora fala-se pouco ou nada dele, pelo menos por cá.
    Um abraço saudoso, mas não saudosista...

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  2. "Muita uva", Sara!
    O primeiro comentário que me vem é sobre a sua pergunta: Quem seriam essa grande parte dos artistas que E. de A. refere?
    O mundo das letras - talvez também o das restantes expressões de arte - está cheio de invejas e antagonismos... Basta abrir os olhos. Lobo A. versus J. Saramago, por exemplo, ou Eça versus Camilo... A história da literatura está cheia de exemplos de emulação e mesquinhez... O umbigo é a parte do corpo que mais se salienta em muito desse pessoal...
    Também li "A Peste" há uns anos. Quando li, pensei: estas coisas hoje não teriam lugar... Pois, toma lá!
    Também gostei da carta de Eugénio de A. a FC. Nela se vê a grande sensibilidade e humanidade do poeta, um dos meus preferidos.

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