8 de novembro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (32)


EPÍSTOLA PARA UM CISNE

 

Cisne, que não conheces na água o teu reflexo verde

quando sob o teu corpo é dia e o sol afaga quedo

ou quando do teu parte há a sombra negra igual

a tudo o que está negro, e é noite, e abandono e medo.

Nem concebes o amor, nem Leda, nem sequer eu mesma

que te amo no poema e temo o canto imaginado

que não cantaste agora ou não ouvi, de madrugada

quando a minha mãe morta era somente insone.

Nunca viste a beleza, nem a vida e os lábios

que sopram as primeiras e últimas palavras, ou

o hálito que sai sem voz da dor mais desolada.

Nem a doença, a morte e os olhos sem imagens

do ar e das cores várias viste em que tu vogas branco.

É falso que celebres sozinho a tua morte e o fim,

se não sabes que só o teu outro cisne se perde.

Mas quando vi insone e logo morta a minha mãe

estou certa de que a cega, a muda, falsa ave cantou.

 

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO, Epístolas e Memorandos (1996)

 

2 comentários:

  1. Na Poesia 61, os maiores poetas foram as mulheres.

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  2. Imagino quão doloroso foi à querida Fiamma escrever este poema. É certo, é figura fundamental da Poesia 61 e Gastão Cruz reserva-lhe muito espaço na Senda. É poema profundo para reler muitas vezes .Faz-me revisitar o mito.Belo poema.

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