26 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (19)

 

Deus,

Precisava bem de ter uma conversa a sério contigo,

se tu não tivesses tido a cobardia de não existires.

Mas safaste-te, não exististe e agora?

Para aqui sem te poder pedir satisfações

e atirar-te à cara com umas tantas questões urgentes

e algum cuspo que viesse atrás.

Se tivesses um pouco de vergonha,

existias mesmo para aguentar com dignidade

o que todos temos para te dizer,

eu, particularmente.

Mas és assim, sem espinha dorsal

e cavaste para onde é o não ser.

Porque eu queria que me dissesses aqui sem tergiversares

para que é que fizeste esta merda.

E não me venhas com o palanfrório da eternidade e o mais,

que não adianta.

Olha agora a gente a aturar os anjinhos e os seus alaúdes

como se isso não fosse mais chatice

do que a chatice que querias compensar.

Não, a coisa é mais séria.

A coisa é que me puseste aqui sem me dares cavaco

e eu que aguente.

A coisa é que és pior que os antigos senhores

com os seus caprichos que metiam sangue, torturas

e outros passatempos

de quem está farto e não sabe como distrair-se.

Estavas chateado?

Fizeste a criação por não teres que fazer?

Mas não vale a pena adiantar mais conversa.

És assim

um tipo invertebrado,

sem um mínimo de vergonha,

e com tipos assim não gosto de conversar.

Se não és o cobarde que te digo na cara que és,

então existe mesmo, existe,

que depois sim, a gente vai ter a sério

uma conversa de homens como deve ser.

Até lá, metes-me náusea e não quero sequer ouvir falar

de ti,

sequer ouvir,

sequer ouvir…

 

VERGÍLIO FERREIRA, Conta-Corrente III (1980-1981)


14 comentários:

  1. Quando um romancista visceral se mete a fazer poesia. Sempre inesperado.

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    1. Na "Conta-Corrente", este poema encontra-se, sem data, entre apontamentos de 20 e 28 de Janeiro de 1980. O autor tinha sido hospitalizado por causa de um enfarte. Ao que parece, é escrito no hospital. Compreende-se aquela revolta contra o pobre Deus inventado pelos homens. Mais de que um questionamento do absoluto, é um estado de alma perante a inevitável vinda da morte. Eternidade!, lá dizia o escritor de Ossela.

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    2. Nem mais.
      Ainda ouvi falar dele ( de Deus, é claro), mas não conheço pessoalmente.

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  2. Halloween

    O que, na vida, me chateia
    É a total falta de hu(a)mor,
    A mentira que entremeia
    Os presbíteros com bolor,

    Países de joelho no pé,
    Rezas de bafientos missais,
    O segredinho do que não é,
    Gritos deificados, fatais.

    Puras fraudes imperdoáveis,
    Roubos aos doentes e pobres
    E janotas admiráveis
    Com basílicos gestos nobres.

    O que, na vida, me chateia
    Nem é a rua empedrada,
    Mas esta movediça teia
    Exclusiva, burra e feia
    De bondade mascarada.

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  3. Quem é o autor deste lindo poema??

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  4. Moi. Fernanda. Ja sei! Vou ser castigada. Mas ê lindo e arrepia. Um visceral levezinho.

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  5. Macro TV, no Meco. Outra, outra, outra vez? O costume. Já estou habituada.

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  6. É o que menos me chateia.

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  7. Belo e sentido arrazoado (tenho algo escrito com a mesma revolta, mas não com o mesmo endereçamento) mas que tem de ser dirigido ao papá e à mamã do autor, porque Deus não tem de servir de preservativo ao livre arbítrio dos humanos... se é que há arbítrio quando prevalece o instinto.

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    1. O papá e mamã do autor não são para aqui chamados e que eu saiba não falei de Deus... Não confunda. Quanto a preservativos, fale por si. Dispenso intervenções diretas onde o instinto prevalece.

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  8. Lembrou-me, a propósito, e suscitado pelo mesmo Virgílio Ferreira: http://acurvadoslivros.blogspot.com/2019/11/a-proposito-de-ate-ao-fim.html

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  9. Cada qual com as suas experiências, meu caro. Nada que me leve ao instinto.

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  10. Figuras frágeis e a límpida filosofia
    eis o dia
    em que acordam os deuses
    e intacto é
    em cada poema perfeito
    sonhando da vida uma vez
    madrugando, a praia porém pariste
    o rigor obstinado e a máquina solene
    do desejo
    e em tudo vias o horizonte hirto de
    cada dia imperfeito…

    Fernando Echevarría

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