Deus,
Precisava bem de ter uma conversa a
sério contigo,
se tu não tivesses tido a cobardia de
não existires.
Mas safaste-te, não exististe e agora?
Para aqui sem te poder pedir satisfações
e atirar-te à cara com umas tantas
questões urgentes
e algum cuspo que viesse atrás.
Se tivesses um pouco de vergonha,
existias mesmo para aguentar com
dignidade
o que todos temos para te dizer,
eu, particularmente.
Mas és assim, sem espinha dorsal
e cavaste para onde é o não ser.
Porque eu queria que me dissesses aqui
sem tergiversares
para que é que fizeste esta merda.
E não me venhas com o palanfrório da
eternidade e o mais,
que não adianta.
Olha agora a gente a aturar os anjinhos
e os seus alaúdes
como se isso não fosse mais chatice
do que a chatice que querias compensar.
Não, a coisa é mais séria.
A coisa é que me puseste aqui sem me
dares cavaco
e eu que aguente.
A coisa é que és pior que os antigos
senhores
com os seus caprichos que metiam sangue,
torturas
e outros passatempos
de quem está farto e não sabe como
distrair-se.
Estavas chateado?
Fizeste a criação por não teres que
fazer?
Mas não vale a pena adiantar mais
conversa.
És assim
um tipo invertebrado,
sem um mínimo de vergonha,
e com tipos assim não gosto de
conversar.
Se não és o cobarde que te digo na cara
que és,
então existe mesmo, existe,
que depois sim, a gente vai ter a sério
uma conversa de homens como deve ser.
Até lá, metes-me náusea e não quero
sequer ouvir falar
de ti,
sequer ouvir,
sequer ouvir…
VERGÍLIO FERREIRA, Conta-Corrente III (1980-1981)
Quando um romancista visceral se mete a fazer poesia. Sempre inesperado.
ResponderEliminarNa "Conta-Corrente", este poema encontra-se, sem data, entre apontamentos de 20 e 28 de Janeiro de 1980. O autor tinha sido hospitalizado por causa de um enfarte. Ao que parece, é escrito no hospital. Compreende-se aquela revolta contra o pobre Deus inventado pelos homens. Mais de que um questionamento do absoluto, é um estado de alma perante a inevitável vinda da morte. Eternidade!, lá dizia o escritor de Ossela.
EliminarNem mais.
EliminarAinda ouvi falar dele ( de Deus, é claro), mas não conheço pessoalmente.
Halloween
ResponderEliminarO que, na vida, me chateia
É a total falta de hu(a)mor,
A mentira que entremeia
Os presbíteros com bolor,
Países de joelho no pé,
Rezas de bafientos missais,
O segredinho do que não é,
Gritos deificados, fatais.
Puras fraudes imperdoáveis,
Roubos aos doentes e pobres
E janotas admiráveis
Com basílicos gestos nobres.
O que, na vida, me chateia
Nem é a rua empedrada,
Mas esta movediça teia
Exclusiva, burra e feia
De bondade mascarada.
É o que mais me chateia.
ResponderEliminarQuem é o autor deste lindo poema??
ResponderEliminarMoi. Fernanda. Ja sei! Vou ser castigada. Mas ê lindo e arrepia. Um visceral levezinho.
ResponderEliminarMacro TV, no Meco. Outra, outra, outra vez? O costume. Já estou habituada.
ResponderEliminarÉ o que menos me chateia.
ResponderEliminarBelo e sentido arrazoado (tenho algo escrito com a mesma revolta, mas não com o mesmo endereçamento) mas que tem de ser dirigido ao papá e à mamã do autor, porque Deus não tem de servir de preservativo ao livre arbítrio dos humanos... se é que há arbítrio quando prevalece o instinto.
ResponderEliminarO papá e mamã do autor não são para aqui chamados e que eu saiba não falei de Deus... Não confunda. Quanto a preservativos, fale por si. Dispenso intervenções diretas onde o instinto prevalece.
EliminarLembrou-me, a propósito, e suscitado pelo mesmo Virgílio Ferreira: http://acurvadoslivros.blogspot.com/2019/11/a-proposito-de-ate-ao-fim.html
ResponderEliminarCada qual com as suas experiências, meu caro. Nada que me leve ao instinto.
ResponderEliminarFiguras frágeis e a límpida filosofia
ResponderEliminareis o dia
em que acordam os deuses
e intacto é
em cada poema perfeito
sonhando da vida uma vez
madrugando, a praia porém pariste
o rigor obstinado e a máquina solene
do desejo
e em tudo vias o horizonte hirto de
cada dia imperfeito…
Fernando Echevarría