RETRATO DE RAPARIGA
Muito hirta de
pé no patamar do sono
Contornando sem pressa a curva de uma
artéria
Por mais ocasional que fosse o nosso
encontro
dava-me a entender que estava à minha
espera
Com um livro na mão com
um lenço ao pescoço
uma expressão cansada a
palidez inquieta
de quem andasse ao vento ou trouxesse no
rosto
em vez de pó-de-arroz um pó de
biblioteca
surgia de repente onde sempre estivera
em Zurique em Paris
em Liège em Colónia
Por único endereço uma carreira aérea
Mas não sei se era louca ou
apenas mitómana
Onde quer que eu a visse uma coisa era
certa
Numa rua num
bar num museu
numa doca
dava-me a entender que estava à minha
espera
dava-me a entender que se chamava Europa
DAVID MOURÃO-FERREIRA, Do Tempo ao Coração (1966)
Um belo poema, com um remate soberbo. O DM-F é um poeta que por vezes me arrebata e outras me deixa quase indiferente, diria. Também tenho um dele na minha lista.
ResponderEliminarArrebatamento
ResponderEliminarHoje acordei sem horas,
Como uma asa desistida.
Estico a preguiça avolumada
Nessa linha de hirta rigidez.
Não me apetece existir
No pó-de-arroz da palidez.
Nem sequer me levanto para a loucura de ti.
Não tenho lenços que cheguem...
Hoje decidi odiar
Todos os livros
Todas as músicas
Todos os quadros
Todas as estátuas.
Virarei o rosto ao garfo de palha.
Podes calcar todos os locais artificiais
Que em nenhum deles me serás.
Ficarei no sono do que poderia ter sido
Na palavra-arame de coração entalado.
Não calçarei os meus sapatos por ti.
Decidi esta indiferença magoada.
https://youtu.be/AWVUp12XPpU?feature=shared
ResponderEliminarSim senhor! Belo desenvolvimento e concusão. Gostei.
ResponderEliminarNunca esquecer: O poeta é um mentiroso.
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