27 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (20)

 

RETRATO DE RAPARIGA

 

Muito hirta     de pé    no patamar do sono

Contornando sem pressa a curva de uma artéria

Por mais ocasional que fosse o nosso encontro

dava-me a entender que estava à minha espera

Com um livro na mão     com um lenço ao pescoço

uma expressão cansada    a palidez inquieta

de quem andasse ao vento ou trouxesse no rosto

em vez de pó-de-arroz um pó de biblioteca

 

surgia de repente onde sempre estivera

em Zurique    em Paris    em Liège    em Colónia

Por único endereço uma carreira aérea

Mas não sei se era louca     ou apenas mitómana

Onde quer que eu a visse uma coisa era certa

Numa rua     num bar    num museu    numa doca

dava-me a entender que estava à minha espera

dava-me a entender que se chamava Europa

 

DAVID MOURÃO-FERREIRA, Do Tempo ao Coração (1966)



5 comentários:

  1. Um belo poema, com um remate soberbo. O DM-F é um poeta que por vezes me arrebata e outras me deixa quase indiferente, diria. Também tenho um dele na minha lista.

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  2. Arrebatamento

    Hoje acordei sem horas,
    Como uma asa desistida.

    Estico a preguiça avolumada
    Nessa linha de hirta rigidez.

    Não me apetece existir
    No pó-de-arroz da palidez.

    Nem sequer me levanto para a loucura de ti.
    Não tenho lenços que cheguem...

    Hoje decidi odiar
    Todos os livros
    Todas as músicas
    Todos os quadros
    Todas as estátuas.

    Virarei o rosto ao garfo de palha.

    Podes calcar todos os locais artificiais
    Que em nenhum deles me serás.

    Ficarei no sono do que poderia ter sido
    Na palavra-arame de coração entalado.

    Não calçarei os meus sapatos por ti.
    Decidi esta indiferença magoada.

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  3. https://youtu.be/AWVUp12XPpU?feature=shared

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  4. Sim senhor! Belo desenvolvimento e concusão. Gostei.

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  5. Nunca esquecer: O poeta é um mentiroso.

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