28 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (21)

 

21.

 

como uma pedra no silêncio

como um chicote na moleza

o pensamento preciso sem cerimónia

dá um passo

 

o ponteiro do relógio com ferrugem

embota as hélices frementes

mas na cilada dos divãs crescente

o pastor de macaco pensa que

não basta cruzar os braços

 

não basta cruzar os braços

esperar a lua entre nuvens

enquanto a paisagem se derrama

não basta pensar um dia

 

roldanas prontas nos guindastes

rolam pesados cabos de aço

 

é preciso criar os dias

é preciso criar o sentido dos dias

 

MÁRIO DIONÍSIO, O Riso Dissonante (1950)


8 comentários:

  1. Respostas
    1. Olá, bom dia! Penso então que se estará a referir ao "Terceira Idade", de 1982, não ao velhinho "Poemas" do NOVO CANCIONEIRO. Na autobiografia (edição de "O Jornal") diz: « ... se "Poemas" e, já menos, "As Solicitações e Emboscadas" devem muito como clima imagético aos espanhóis, "O Riso Dissonante" a Éluard e Aragon, sobretudo a Tzara (...), na "Memória dum pintor desconhecido" e em "Terceira Idade" é dum regresso a Camões e a Pessoa que espontaneamente se trata»

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    2. Viva, caro. É exactamente a esse que me refiro, ao Terceira Idade, para além deste só li o primeiro, na versão original do Novo Cancioneiro. Aquele, incomparável, quanto a mim.

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    3. A linguagem da primavera

      Qualquer criança sabe o que diz a primavera:
      Vive, cresce, floresce, ama, confia
      Alegra-te e segue os teus novos impulsos
      Entrega-te e não temas a vida!

      Qualquer ancião sabe o que diz a primavera:
      Deixa-te disso, velho, entra para a cova,
      Cede o teu espaço aos rapazes viçosos
      Entrega-te e não temas a morte!

      Hermann Hesse
      (in Elogio da Velhice)

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  2. Respostas
    1. Deduzo que não fui claro, pelo que esclareço: não escrevi em inglês; limitei-me a reproduzir um som; poderia ter sido «un» ou «an»... ou ficar calado (omisso).

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  3. Queixa das almas jovens censuradas

    Dão-nos um lírio e um canivete
    e uma alma para ir à escola
    mais um letreiro que promete
    raízes, hastes e corola

    Dão-nos um mapa imaginário
    que tem a forma de uma cidade
    mais um relógio e um calendário
    onde não vem a nossa idade

    Dão-nos a honra de manequim
    para dar corda à nossa ausência.
    Dão-nos um prémio de ser assim
    sem pecado e sem inocência

    Dão-nos um barco e um chapéu
    para tirarmos o retrato
    Dão-nos bilhetes para o céu
    levado à cena num teatro

    Penteiam-nos os crâneos ermos
    com as cabeleiras das avós
    para jamais nos parecermos
    connosco quando estamos sós

    Dão-nos um bolo que é a história
    da nossa história sem enredo
    e não nos soa na memória
    outra palavra que o medo

    Temos fantasmas tão educados
    que adormecemos no seu ombro
    somos vazios despovoados
    de personagens de assombro

    Dão-nos a capa do evangelho
    e um pacote de tabaco
    dão-nos um pente e um espelho
    pra pentearmos um macaco

    Dão-nos um cravo preso à cabeça
    e uma cabeça presa à cintura
    para que o corpo não pareça
    a forma da alma que o procura

    Dão-nos um esquife feito de ferro
    com embutidos de diamante
    para organizar já o enterro
    do nosso corpo mais adiante

    Dão-nos um nome e um jornal
    um avião e um violino
    mas não nos dão o animal
    que espeta os cornos no destino

    Dão-nos marujos de papelão
    com carimbo no passaporte
    por isso a nossa dimensão
    não é a vida, nem é a morte.

    Natália Correia

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