4 de outubro de 2023

POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA, século XX (2)

 

ARIANE

 

Ariane é um navio.

Tem mastros, velas e bandeiras à proa,

E chegou num dia branco, frio,

A este rio Tejo de Lisboa.

 

Carregado de Sonho, fundeou

Dentro da claridade destas grades…

Cisne de todos, que se foi, voltou

Só para os olhos de quem tem saudades…

 

Foram duas fragatas ver quem era

Um tal milagre assim: era um navio

Que se balança ali à minha espera

Entre gaivotas que se dão no rio.

 

Mas eu é que não pude ainda por meus passos

Sair desta prisão em corpo inteiro,

E levantar a âncora, e cair nos braços

De Ariane, o veleiro.

 

MIGUEL TORGA, Diário I (1941)


3 comentários:

  1. Não era flor que se cheirasse, o Torga; porém inegavelmente um grande poeta e um grande contista.
    O poema, entre outras coisas, é admirável de ritmo; e sem ritmo dificilmente há poesia.

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  2. Grande poeta, sim. Poema escrito em Lisboa, a 1 de Janeiro de 1940, na Cadeia do Aljube. Lá o haviam encerrado os esbirros da mesa censória por causa de um volume de "A Criação do Mundo" de que não gostaram.

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  3. Como símbolo da prisão, está «fino». Já visitaram o Aljube? Lá está a referência ao Torga.

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