VINCENT
Eu tinha um pássaro de gesso feliz, o vento tão arrumado. E agora os sentimentos sobram-me. E a consciência também. O desfloramento do meu jardim. O desarrumo dos meus dentes. Era a voragem da minha pessoa, puro e adorável Van Gogh, aconchegante louco, azul teimoso, chapéu de palha. O alienado que me aquecia o coração, por todos os alienados deste mundo. Vê-se cada um, tão imundo, tão perigoso.
Julgava-te eu só e incompreendido, tão irmão do seu irmão, e Theo tão teu irmão extremoso, e vem agora este senhor Pialat, Maurice de seu nome, dizer que não, nada disso, que eras de um aprumo, um rigor mental, como nunca vi, tão saudável e vigoroso, sobriamente brincalhão com crianças e até com raparigas, vejam só! Eu julgava que tu tinhas o melhor irmão do mundo. Eu pensava o romance da tua noite. Eu gosto muito de estrelas.
Afinal, tinhas ou não irmão? E o que fazer desta pistola? Parecia tão cheia de memórias airosas, virtudes do meu sangue. Comprada em leilão por setenta e cinco mil dólares, a tua amorosa morte à venda, imperdível, a pistola com que te mataste, estúpido. O que vou eu fazer com ela agora? Tal como é. Tão vulgar.
ANTÓNIO AMARAL TAVARES (1964), A Faca que Une (2020)
Sim é um belo poema. Renovará a poesia portuguesa? começamos bem o século. Ah! a faca une...mas não corta o fogo ...
ResponderEliminarUm belo poema à Irmandade. Não o conhecia.
ResponderEliminarQual poema à Irmandade qual carapuça! Tinha mas é acabado de levantar-me... Li o nome do Theo, e emocionei-me. O Theo será sempre o Theo. Tenho de ver o filme do Pialat para saber o que diz ele a respeito.
EliminarPoema? Onde está o ritmo, a cadência?
ResponderEliminarEste parece-me um bom exemplo daquilo que o Junqueiro diz mais em baixo: estabelece uma amizade mais estreita entre as palavras, e que produzem sentido -- como o faria um relatório, só que de outra maneira...
EliminarE temos sempre aquilo a que chamamos prosa poética, embora não me pareça ser este o caso.
A junqueiral figura conheceria os poemas em prosa de "O Spleen de Paris". Na carta-prefácio da obra, Baudelaire fala de «uma prosa poética, musical sem ritmo [sem ritmo, note-se] e sem rima, suficientemente maleável e suficientemente contrastante para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência». O poema em prosa não tem versos, tem linhas. O que o distingue do texto prosaico propriamente dito é a linguagem. Ruy Belo dizia que a poesia é uma «doença da linguagem» (entenda-se, sem o rigor semântico e sintáctico de outros discursos: científico, jurídico, jornalístico, etc.). Para saber que estou diante de poesia, bastam-me frases como "Eu pensava o romance da tua noite", "Eu gosto muito de estrelas" ou "Afinal, tinhas ou não irmão?". E quanto a Theo, ele não me emociona mais do que Vincent.
ResponderEliminarHuguesco e certamente hugólatra, não faço ideia se o Junqueiro alguma vez escreveu sobre. O Eça sim, desde muito jovem, provavelmente desde Coimbra, e a propósito dissertou, logo na «Gazeta de Portugal».
EliminarA propósito de frases do Ruy Belo, e a propósito de poesia e prosa, guardo esta, absolutamente lapidar, caraças: "A poesia aceita-se, a prosa conquista-se."
Quanto a emoções: a bondade e a fraternidade sempre me impressionaram. Será talvez uma questão estética pessoal.
Prosa poética? Sem dúvida. Há romances inteiros (ou quase) feitos em prosa poética...
ResponderEliminarQuanto à beleza... inquestionável! (Quanto mais vezes se lê, mais se gosta...)
Limite meu, com certeza, mas não consigo digerir estas coisas como poesia.
ResponderEliminarFica declarado isto para os passados, em que me abstive, e para os futuros que venham a aparecer.