27 de dezembro de 2023

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XVII

SECRETÁRIO DA ALMA

 

A memória é o túmulo dos meus versos.

Haverá sempre mausoléus

Para a língua

Enquanto a boca invocar a palavra húmida de sangue,

Cálida de tempo, de breves alegrias e de humores

Onde a voz possa correr, livre,

Sem ser apunhalada pela industriosa mão,

Vazia, maquinal, da morte.

 

Todos temos corpos que os séculos hão-de consumir,

Mas a fala produz o pensamento,

A mão desenha a letra, o poema enaltece,

No leito sensual feito de frases

Adormece a beleza.

E a inocente, esquiva música das sílabas,

Enlouquecida,

Desperta.

 

Secretário da alma, o coração

Não descansa na laje da morada em que sossega.

Estremece nos seus sonhos,

E volve em seu redor o olhar desmesurado:

É dia de além sol, além lua, além distância,

Rasgadas as palavras de abandono

E Luta. Mas a Terra é a escrita,

E o livro o Universo.

 

ARMANDO SILVA CARVALHO (1938-2017), Anthero Areia & Água (2010)



4 comentários:

  1. Poema metalinguístico bem conseguido na concepção cósmica da própria literatura. Concordas?

    ResponderEliminar
  2. Sim, metalinguístico e metaliterário. Mas note-se que o sujeito lírico incorpora a voz de Antero. Este livro de ASC é constituído por 50 poemas todos em torno da figura humana e intelectual de Antero de Quental. O poeta das "Odes Modernas" está por toda a parte. Evocações de Coimbra, de Paris, de Vila do Conde (os anos mais felizes da vida, dizia), e também da Ilha onde, sentado num banco de jardim, disparou dois tiros contra si. Presentes personalidades que de uma forma ou outra o tocaram: João de Deus, Queiroz, Michelet, Bulhão Pato, Castilho, o Ávila que proibiu as Conferências do Casino, Teófilo, Oliveira Martins, Taine, Proudhon... e devo ter deixado passar mais algumas...

    ResponderEliminar