19 de dezembro de 2023

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XI

 

PARTE INCERTA

 

Já nem sei onde moras, onde fica

a tua porta, nudez corredia a que foi

sentinela, intrusa tão nítida

como as coisas recortadas pelo fogo.

Como deve ser quem espera

do amor uma relíquia magra,

como deve ser quem guarda

ossos, cerrados horizontes,

a elegância ferida.

Póstuma e de boa imprensa, já te ofereço

o meu cadáver, nó de leite

no azedo da memória, ou os meus seios

que se abrigam dobrados na nudez.

Nunca soube de onde vinha

tanta esperança, um poço

acendendo desde o fundo todo o ar,

e a minha boca tua imunda fera

morta, dividida ao estertor,

como em noites muito exactas

de calor nas mãos se racha

a madeira de um móvel que estimas.

 

ANDREIA C. FARIA (1984), Canina (2022)



4 comentários:

  1. Isto é, formalmente, do melhor que tenho lido em certa poesia contemporânea, à qual ponho muitas reservas. Por norma, depois de ler, apetece-me perguntar: "E depois?..."

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  2. Recordo-me nitidamente quando comecei a ler Andreia C. Faria. As leituras foram pontuadas por certos dissabores ao perceber que algumas pessoas adoravam a escrita desta poeta mas, dentro de mim, pouco ou nada se agitava no decorrer das mesmas. É evidente que, por mais que os meus gostos sejam compatíveis com os de outros leitores, há, e haverá sempre, espaço para divergências, mas não conseguia mesmo entender e sentir os elogios que lhe teciam. Confesso que os primeiros livros deixaram-me na mais pura indiferença, raros foram os poemas que me interessaram.
    Até que, à medida que ia avançando, fui sentindo uma voz menos metafórica, libertando-se do pudor de expor a vulnerabilidade e mais confiante para nos mostrar as suas vivências e inseguranças.
    A mudança deu-se quando li "Tão Bela Como Qualquer Rapaz". Fiquei deliciada 😊

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    1. Aqueles dois versos do poema "Prematuridade": «Sofrer é o menos perigoso dos hábitos, / um modo indúctil de respirar.»

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    2. Sim. E do Canina gostei particularmente de dois poemas. O que publicaste, "Parte Incerta", e "Por Todos os Poros".
      Deste último: «Alguém disse que a beleza entra em nós por todos os poros, sobretudo quando sofremos.»

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