PARTE INCERTA
Já nem sei onde moras, onde fica
a tua porta, nudez corredia a que foi
sentinela, intrusa tão nítida
como as coisas recortadas pelo fogo.
Como deve ser quem espera
do amor uma relíquia magra,
como deve ser quem guarda
ossos, cerrados horizontes,
a elegância ferida.
Póstuma e de boa imprensa, já te
ofereço
o meu cadáver, nó de leite
no azedo da memória, ou os meus seios
que se abrigam dobrados na nudez.
Nunca soube de onde vinha
tanta esperança, um poço
acendendo desde o fundo todo o ar,
e a minha boca tua imunda fera
morta, dividida
ao estertor,
como em noites muito exactas
de calor nas mãos se racha
a madeira de um móvel que estimas.
ANDREIA C. FARIA (1984), Canina (2022)
Isto é, formalmente, do melhor que tenho lido em certa poesia contemporânea, à qual ponho muitas reservas. Por norma, depois de ler, apetece-me perguntar: "E depois?..."
ResponderEliminarRecordo-me nitidamente quando comecei a ler Andreia C. Faria. As leituras foram pontuadas por certos dissabores ao perceber que algumas pessoas adoravam a escrita desta poeta mas, dentro de mim, pouco ou nada se agitava no decorrer das mesmas. É evidente que, por mais que os meus gostos sejam compatíveis com os de outros leitores, há, e haverá sempre, espaço para divergências, mas não conseguia mesmo entender e sentir os elogios que lhe teciam. Confesso que os primeiros livros deixaram-me na mais pura indiferença, raros foram os poemas que me interessaram.
ResponderEliminarAté que, à medida que ia avançando, fui sentindo uma voz menos metafórica, libertando-se do pudor de expor a vulnerabilidade e mais confiante para nos mostrar as suas vivências e inseguranças.
A mudança deu-se quando li "Tão Bela Como Qualquer Rapaz". Fiquei deliciada 😊
Aqueles dois versos do poema "Prematuridade": «Sofrer é o menos perigoso dos hábitos, / um modo indúctil de respirar.»
EliminarSim. E do Canina gostei particularmente de dois poemas. O que publicaste, "Parte Incerta", e "Por Todos os Poros".
EliminarDeste último: «Alguém disse que a beleza entra em nós por todos os poros, sobretudo quando sofremos.»