23 de dezembro de 2023

21 POEMAS DO SÉCULO 21 - XV


BELARMINO

 

Não temos agora maneira de explicar os rebanhos

aos nossos filhos. Em dias como hoje, há uma aragem

que vem do campo, passou rente à terra, desce pela

rua de São João e pelo fim da tarde, conforme o rebanho

de ovelhas do teu pai noutro tempo. Recordas ainda

o cheiro da lã? Às vezes, em criança, ficavas sério

de repente. Desde que morreste, é quase sempre

com esse rosto que te vejo. Tínhamos cinco anos e

todos os cães se chamavam Fadista, eram animais

orgulhosos do seu trabalho, sabiam distinguir-nos

dos rapazes que vinham de Lisboa, férias da Páscoa,

deixavam-nos levantar a mão, pousar-lha com respeito

sobre a cabeça. Não temos agora maneira de explicar

o olhar desses cães aos nossos filhos. A tua principal

obra não foi morrer, embora custe esquecer a tua campa

de mármore, custa esquecer este preciso instante.

Foste o meu primeiro amigo. Na última vez que nos

vimos, apresentaste-me a tua filha e deste-me a notícia

da criança que estava para nascer. Havia tanto futuro,

despedirmo-nos seria uma ideia ridícula. Acreditávamos

ainda, como quando não chegávamos aos figos, e,

livres de dúvidas, subíamos às figueiras, rodeados por

verão, os nervos das folhas atravessados pelo sol.

Não sabemos o que é a vida. Parece infinito o tempo

que passávamos a regressar juntos da escola ou,

quando já éramos adolescentes, a regressar juntos

do terreiro e, no entanto, a morte como um muro,

tu desse lado, eu deste lado, a morte como um muro

caiado e incandescente.

 

JOSÉ LUÍS PEIXOTO (1974), Regresso a Casa (2020)



9 comentários:

  1. Muito belo!
    Apesar de escrever quase só prosa, Peixoto é essencialmente um poeta. Até pelo olhar se vê.
    Depois, este poema ajusta-se tanto a mim... Apesar de nunca termos tido um rebanho e o cão não se chamar Fadista; Piloto era o seu nome, invariavelmente...

    ResponderEliminar
  2. Sinto curiosidade mas ainda não li a poesia de JLP. Gostaste, Manuel?

    ResponderEliminar
  3. Um belo poema sobre o "país da infância" (Saint-Ex.).
    O Peixoto provocou muita inveja, por ter sido muito bem sucedido. Não sendo um fora-de-série, o que escreve (do pouco que conheço) está acima da média, creio também que pela sua autenticidade. De qualquer modo, muito superior à maioria dos seus detractores.

    ResponderEliminar
  4. Paula e Ricardo:
    Em poesia, este é o único livro do Peixoto que li. Gostei. Mas tenho frequentado pouco o escritor. O livro melhor é, para mim, o primeiro: “Nenhum Olhar”. Depois ainda fui a “Cemitério de Pianos” e ao livro da viagem à Tailândia, não me passando pela cabeça poder sentar-me à mesa no “Almoço de Domingo”. O Peixoto fez a opção de viver da escrita (daí, parece-me, a razão dos livros de viagens – Coreia do Norte, Tailândia – e a biografia romanceada do Nabeiro). Parece uma ideia justa, mas tem os seus riscos em termos de criação de uma obra. Julgo que me fiz entender.


    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda que o desafio não me seja dirigido directamente, passe o pleonasmo, concordo inteiramente. Li com agrado (muito) o Nenhum Olhar, (bastante) a viagem à Coreia de Norte, (moderado) o Cemitério de Pianos, (pouco) o Livro. Tentei ler o Abraço (por sinal autografado) mas não passei das primeiras páginas... Foi escrito 'à sombra da bananeira' ...

      Eliminar
    2. Eu conheço alguma da sua poesia, possuo "A Criança em Ruínas". Ponho-o a um nível médio. Só li o "Nenhum Olhar", quanto à prosa, que está acima da média. Todos dizem que é o seu melhor, estou disponível para ler outros, incluindo o "Almoço de Domingo". Da sua geração, só li uma obra-prima, «As Primeiras Coisas», do Bruno Vieira Amaral. Se houver mais, apitem.

      Eliminar
    3. Andei agora à procura e encontrei algumas notas sobre os livros que li do Peixoto. "Cemitério de Pianos" foi aquele que mais gostei. Talvez por basear-se na história do maratonista Francisco Lázaro. Sobre o mesmo escrevi nas últimas linhas do post:
      Com uma fluência extraordinária e um travo a poesia que sacia os que lêem também pelo prazer das palavras, este é um livro para nunca mais esquecer.
      Sem artifícios desnecessários, a escrita de José Luis Peixoto é de facto, de uma consistência irrepreensível.
      Isto em 2008. Hoje escreveria o mesmo? Não sei.
      Vou anotar, para ler em breve, "Regresso a Casa".
      Concordo contigo, Manuel, quando escreves que viver da escrita comporta alguns riscos em termos de criação de uma obra. Um deles, creio, é a perda de liberdade. Liberdade de escolha e, talvez, de certo pensamento ou visão crítica.
      Isto sucede na escrita como em outras áreas. Penso na fotografia. Em Elliott Erwitt, grande fotojornalista falecido recentemente. Fazia também trabalhos de moda e publicidade, bem remunerados, pois, segundo as suas palavras « ... tenho de sustentar quatro mulheres e os meus filhos. Não posso parar de trabalhar profissionalmente». Era criticado pelo Cartier-Bresson. Considerava Erwitt um fotógrafo extraordinário mas não deveria fazer moda ou publicidade, pois era uma espécie de prostituição.
      Fácil falar quando se vem de uma família rica.
      Não é portanto uma escolha linear, mas que tem os seus riscos e dissabores, tem. João Tordo, um dos herdeiros de Saramago, reflecte sobre estas questões. Também vive da escrita 😉

      Eliminar
    4. O Robert Graves tem uma frase com muita piada que é mais ou menos assim: os romances são os meus cães de prova, que faço desfilar para sustentar os meus gatos, a poesia.

      Eliminar