BELARMINO
Não temos agora maneira de explicar
os rebanhos
aos nossos filhos. Em dias como hoje,
há uma aragem
que vem do campo, passou rente à
terra, desce pela
rua de São João e pelo fim da tarde,
conforme o rebanho
de ovelhas do teu pai noutro tempo.
Recordas ainda
o cheiro da lã? Às vezes, em criança,
ficavas sério
de repente. Desde que morreste, é
quase sempre
com esse rosto que te vejo. Tínhamos
cinco anos e
todos os cães se chamavam Fadista,
eram animais
orgulhosos do seu trabalho, sabiam
distinguir-nos
dos rapazes que vinham de Lisboa,
férias da Páscoa,
deixavam-nos levantar a mão,
pousar-lha com respeito
sobre a cabeça. Não temos agora
maneira de explicar
o olhar desses cães aos nossos
filhos. A tua principal
obra não foi morrer, embora custe
esquecer a tua campa
de mármore, custa esquecer este
preciso instante.
Foste o meu primeiro amigo. Na última
vez que nos
vimos, apresentaste-me a tua filha e
deste-me a notícia
da criança que estava para nascer.
Havia tanto futuro,
despedirmo-nos seria uma ideia
ridícula. Acreditávamos
ainda, como quando não chegávamos aos
figos, e,
livres de dúvidas, subíamos às
figueiras, rodeados por
verão, os nervos das folhas
atravessados pelo sol.
Não sabemos o que é a vida. Parece
infinito o tempo
que passávamos a regressar juntos da
escola ou,
quando já éramos adolescentes, a
regressar juntos
do terreiro e, no entanto, a morte
como um muro,
tu desse lado, eu deste lado, a morte
como um muro
caiado e incandescente.
JOSÉ LUÍS PEIXOTO (1974), Regresso a Casa (2020)
Muito belo!
ResponderEliminarApesar de escrever quase só prosa, Peixoto é essencialmente um poeta. Até pelo olhar se vê.
Depois, este poema ajusta-se tanto a mim... Apesar de nunca termos tido um rebanho e o cão não se chamar Fadista; Piloto era o seu nome, invariavelmente...
Sinto curiosidade mas ainda não li a poesia de JLP. Gostaste, Manuel?
ResponderEliminarUm belo poema sobre o "país da infância" (Saint-Ex.).
ResponderEliminarO Peixoto provocou muita inveja, por ter sido muito bem sucedido. Não sendo um fora-de-série, o que escreve (do pouco que conheço) está acima da média, creio também que pela sua autenticidade. De qualquer modo, muito superior à maioria dos seus detractores.
Paula e Ricardo:
ResponderEliminarEm poesia, este é o único livro do Peixoto que li. Gostei. Mas tenho frequentado pouco o escritor. O livro melhor é, para mim, o primeiro: “Nenhum Olhar”. Depois ainda fui a “Cemitério de Pianos” e ao livro da viagem à Tailândia, não me passando pela cabeça poder sentar-me à mesa no “Almoço de Domingo”. O Peixoto fez a opção de viver da escrita (daí, parece-me, a razão dos livros de viagens – Coreia do Norte, Tailândia – e a biografia romanceada do Nabeiro). Parece uma ideia justa, mas tem os seus riscos em termos de criação de uma obra. Julgo que me fiz entender.
Ainda que o desafio não me seja dirigido directamente, passe o pleonasmo, concordo inteiramente. Li com agrado (muito) o Nenhum Olhar, (bastante) a viagem à Coreia de Norte, (moderado) o Cemitério de Pianos, (pouco) o Livro. Tentei ler o Abraço (por sinal autografado) mas não passei das primeiras páginas... Foi escrito 'à sombra da bananeira' ...
EliminarEu conheço alguma da sua poesia, possuo "A Criança em Ruínas". Ponho-o a um nível médio. Só li o "Nenhum Olhar", quanto à prosa, que está acima da média. Todos dizem que é o seu melhor, estou disponível para ler outros, incluindo o "Almoço de Domingo". Da sua geração, só li uma obra-prima, «As Primeiras Coisas», do Bruno Vieira Amaral. Se houver mais, apitem.
EliminarAndei agora à procura e encontrei algumas notas sobre os livros que li do Peixoto. "Cemitério de Pianos" foi aquele que mais gostei. Talvez por basear-se na história do maratonista Francisco Lázaro. Sobre o mesmo escrevi nas últimas linhas do post:
EliminarCom uma fluência extraordinária e um travo a poesia que sacia os que lêem também pelo prazer das palavras, este é um livro para nunca mais esquecer.
Sem artifícios desnecessários, a escrita de José Luis Peixoto é de facto, de uma consistência irrepreensível.
Isto em 2008. Hoje escreveria o mesmo? Não sei.
Vou anotar, para ler em breve, "Regresso a Casa".
Concordo contigo, Manuel, quando escreves que viver da escrita comporta alguns riscos em termos de criação de uma obra. Um deles, creio, é a perda de liberdade. Liberdade de escolha e, talvez, de certo pensamento ou visão crítica.
Isto sucede na escrita como em outras áreas. Penso na fotografia. Em Elliott Erwitt, grande fotojornalista falecido recentemente. Fazia também trabalhos de moda e publicidade, bem remunerados, pois, segundo as suas palavras « ... tenho de sustentar quatro mulheres e os meus filhos. Não posso parar de trabalhar profissionalmente». Era criticado pelo Cartier-Bresson. Considerava Erwitt um fotógrafo extraordinário mas não deveria fazer moda ou publicidade, pois era uma espécie de prostituição.
Fácil falar quando se vem de uma família rica.
Não é portanto uma escolha linear, mas que tem os seus riscos e dissabores, tem. João Tordo, um dos herdeiros de Saramago, reflecte sobre estas questões. Também vive da escrita 😉
O Robert Graves tem uma frase com muita piada que é mais ou menos assim: os romances são os meus cães de prova, que faço desfilar para sustentar os meus gatos, a poesia.
EliminarGatos e poesia são bons motivos 🙂
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