16 de dezembro de 2023

101 poemas portugueses - #13


ALGUÉM


Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
e tenho as formas ideais do Cristo,
para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
e, se na terra existe, é porque existo.

Esse alguém, que prefere ao namorado
cantar das aves minha rude voz,
não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito
melancólico, triste e fatigado,
esse alguém abre as asas no meu leito,
e o meu sono desliza perfumado.

Chovam bençãos de Deus sobre a que chora
por mim além dos mares! esse alguém
é de meus dias a esplendente aurora,
és tu, doce velhinha, ó minha mãe!


Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 1846 - Lisboa, 1883), Miniaturas (1871)

in Maximiano Augusto Gonçalves, Seleta Literária, Rio de Janeiro, 1961

7 comentários:

  1. Aqui, à beleza junta-se a ternura...
    Mais um poeta a revisitar. Não sabia das suas origens escravas, qual outro Machado de Assis...

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    1. Uma bela e curiosa história que ontem contei. Na próxima, digo-lhe.

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  2. A corrente parnasiana, na qual GC costuma ser incluído, dava grande valor à questão da "rima rica" contra a "rima pobre". Bilac foi exímio nesse particular. Neste poema, nota-se um caso de rima pobre na 1ª quadra: "abrolhos" a rimar com "olhos"; e outro na 3ª, "fatigado" com "perfumado". A rima rica é a que é feita com palavras de diferente classe gramatical. Como facilmente verão, ela é predominante no poema em casos nome/verbo e nome/pronome, por esta ou na ordem inversa.

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    1. Bem visto. As minhas escolhas, como as da generalidade, creio, estão sempre para além da técnica, na qual, de resto, sou incompetente. Mas acredito que para ouvidos treinados no cânone possa ser óbice. Este «Miniaturas» é o seu primeiro dos dois únicos livros que publicou (o outro é «Nocturnos»).

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    2. Recordei algumas coisas e aprendi outras; bem hajas, Manuel.

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  3. Porque (eu) não tenha evoluído, continuo a preferir este tipo de poesia.
    Ainda me restam 46 anos para poder converter-me.

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    1. Eu diria que, como em tudo o resto, só há dois tipos de poesia (com gradações, claro): a boa e a má.

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