30 de julho de 2025

101 poemas portugueses - #70

 

ARRÁBIDA


O vento bate na face
De quem sobe àquela serra.
Vento que por ali erra
Bate na face a quem passe
Perto do cimo da serra.
 
Bate forte, o vento forte,
Chicoteando com força,
Ao vir das bandas do norte,
Chicoteando com força,
Dono da serra e da morte.
 
Consente, vento, que eu passe
Pelo alto desta serra
E não me batas na face
Porque, se mais não bastasse,
Basta eu ser da tua terra.
 
Não grites assim tão forte
Nem te exaltes contra mim,
Porque eu também sou do norte:
Donde tu vens, também vim,
Vento que ventas do norte.
 
Venho ver frei Agostinho;
Trazer ao Frade saudades
Das verdes terras do Minho:
Venho falar de saudades
Com o Poeta Agostinho.
 
Morreu o Sebastião
Que lhe falava, falava,
Das coisas do coração.
E o frade está desolado
Era quase como um irmão!...
 
Ele mora ali em cima
E a conversa não demora.
Venho falar-lhe do Lima,
Venho falar-lhe de Ponte,
E outras coisas que ele ignora.
 
Regresso depois ao Minho,
Vento que sopras do norte
E guardas Frei Agostinho.
Se um dia quiser recados,
Traze-los tu, vento norte?
 
 
Arrábida, 8/3/53
 
 
Júlio Evangelista (Quinta da Formiga, Valença, 1927 - valença, 2005)

in António Mateus Vilhena e Daniel Pires,

A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa

22 de julho de 2025

101 poemas portugueses - #69

 

O ÚLTIMO ADEUS DUM COMBATENTE


Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!


Vasco Cabral (Farim, Guiné-Bissau, 1926 - Bissau, 2005) ,

in Sophia de Mello Breyner Andresen, Primeiro Livro de Poesia (1991)

18 de julho de 2025

as aberturas de BICHOS

 

14. «Vicente». «Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu.»

13. «O Senhor Nicolau». «O pai queria fazer dele um homem.»

12. «Miura». «Fez um esforço.»

11. «Farrusco». «Dentro da poça do Lenteiro, há rãs.»

10. «Ramiro». « --Deus nos dê muito bons dias!»

9. «Ladino». «Grande bicho, aquele Ladino, o pardal!»

8. «Cega-Rega». «É difícil.»

7. «Jesus». «Comiam todos o caldo, recolhidos e calados, quando o menino disse:»

6. «Tenório». «Esta é a história verdadeira de Tenório, o galo.»

5. «Bambo». «O filho do caseiro novo é que lhe fez aquilo.»

4. «Morgado». «À ceia, o patrão, com cara de poucos amigos, recusara-lhe as festas desta maneira:»

3. «Madalena». «Queimava.»

2. «Mago». «Mago respirou fundo.»

1. «Nero». «Sentia-se cada vez pior.»


Miguel Torga, Bichos (1940), 19.ª ed, Coimbra, 1995 

16 de julho de 2025

101 poemas portugueses - #68

 

VÓS QUE OCUPAIS A NOSSA TERRA


É preciso não perder

de vista as crianças que brincam:

a cobra preta passeia fardada

à porta das nossas casas.

Derrubam as árvores fruta-pão

para que passemos fome

e vigiam as estradas

receando a fuga do cacau.

A tragédia já a conhecemos:

a cubata incendiada,

o telhado de andala flamejando

e o cheiro do fumo misturando-se

ao cheiro do andu

e ao cheiro da morte.

Nós nos conhecemos e sabemos,

tomamos chá do gabão,

arrancamos a casca do cajueiro.

E vós, apenas desbotadas

máscaras do homem,

apenas esvaziados fantasmas do homem?

Vós que ocupais a nossa terra?


Maria Manuela Margarido (Roça Olímpia, Ilha do Príncipe, 1925 - Lisboa, 2007)

Poetas de S. Tomé e Príncipe (1963) /in Manuel Ferreira,  No Reino de Caliban II (1976)