TEXTO ESQUISITO E ESCASSO (NÃO DÁ
PARA ADORMECER) ONDE SE FALA DO LEITO DE PROCUSTO, DE OUTROS MITOS E DE IDEIAS
DE GRANDES MESTRES MALBARATADAS PELO ESCREVENTE.
Um prosador qualquer desfruta fama
honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me
contrarie
Do que escrever em prosa.
CESÁRIO
VERDE, “Contrariedades”
Respeite-se o sentimento do grande
Cesário, cada um nasce para a sua arte. “Contrariedades” é um belo poema:
dezassete quadras de rima interpolada (ABBA) estruturadas segundo três versos
de doze silabas (alexandrinos) com remate de um verso hexassilábico. Foi bom
ouvi-lo na sessão da passada sexta-feira do Clube de Leitura.
A opção entre verso rimado e verso branco,
como entre verso medido e verso livre, é hoje uma questão resolvida: a rima e a
métrica são auxiliares rítmicos do poema, mas são igualmente uma limitação do
poeta. Mário de Andrade, vulto grande do Modernismo brasileiro, escreverá em
1922 no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia
Desvairada: “Não
acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de
Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional
de sílabas (…) Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela.”
Sem rima nem métrica, o que distingue
a poesia da prosa? Disse Shelley que “a distinção entre poetas e
prosadores é um erro vulgar”, acrescentando: “Um
poema é a própria imagem da vida, expressa na sua verdade eterna. Uma diferença
existe entre uma história e um poema, que é esta: uma história é um catálogo de
factos desligados, que não possuem nenhuma outra conexão que não seja o tempo,
lugar, circunstâncias, causa e efeito; o poema é a criação das acções de acordo
com as formas imutáveis da natureza humana, como existem no espírito do
Criador, que é ele próprio a imagem de todos os outros espíritos.” E Edgar Allan Poe não anda longe
desta ideia. Segundo ele, a diferença entre poema e romance é que aquele tem
por seu objecto um prazer indefinido, enquanto
o romance se realiza no domínio do prazer
definido. Ou seja: “O
romance apresenta imagens perceptíveis com sensações definidas, e a poesia com
sensações indefinidas, para cujo fim a música é uma parte essencial, dado que a nossa concepção mais indefinida é a
compreensão de um som doce.”
No prefácio-dedicatória de O Spleen de Paris, diz Baudelaire: “Qual de nós não sonhou, nos seus
dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem
rima, suficientemente maleável e suficientemente contrastante para se adaptar
aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da
consciência?”
Não é então da condição perene da
poesia nem a rima nem a métrica. O poema pode estar disposto em prosa, a prosa
pode ser poesia. Assim o entendeu Wordsworth, para quem a arte verbal abriga, sob uma mesma concepção estética, tanto a
poesia metrificada como a prosa artística, sendo que “algumas das partes mais interessantes
dos melhores poemas pertencem rigorosamente à linguagem da prosa, quando a prosa é bem escrita.”
Confuso? Não será por falta de
clareza dos mestres citados; só se for pelo pouco jeito do escrevente que ainda
mal entende destas coisas e já se apressa em as “explicar” aos outros.
Desculpem-no lá, coitado.
Citações tiradas de:
= BAUDELAIRE, Charles – O Spleen de Paris, tradução de Jorge
Fazenda
Lourenço, Relógio de Água Editores,
2007.
= DOLOZEL, Lubomir – A Poética Ocidental, tradução de Vivina
de Campos Figueiredo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.
= POE, Edgar Allan – Poética (textos teóricos), tradução de
Helena Barbas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
= RIBEIRO, Maria Aparecida – Literatura Brasileira, Lisboa,
Universidade Aberta, 1994.
= SHELLEY, Percy – Defesa da Poesia, tradução de J. Monteiro-Grillo, Lisboa, Editores
Reunidos, 1996.
= VERDE, Cesário – O Livro de Cesário Verde, Lisboa, Editora Ulisseia, s/d.
E em jeito de nota final: safa!, este
texto quase tem mais linhas de citações do que de escrita original. Uma verdadeira
arte de recorte e colagem!
Claríssimo, meu caro!)
ResponderEliminarUm exemplo de como se pode fundir cultura com prazer.
ResponderEliminarOnde estão afinal os limites? A natureza não dá pulos: provavelmente também não aqui. Onde começa e prosa e acaba a poesia e vice-versa? Que cada um de nós medite sobre o que escreveu já, e conclua.
Manel,
ResponderEliminarTexto muito esclarecedor. Abri-o agora . Lerei com atenção de aprendiz que o sou, sinceramente, na literatura e na vida.