9 de março de 2014

POESIA E PROSA (II)


TEXTO ESQUISITO E ESCASSO (NÃO DÁ PARA ADORMECER) ONDE SE FALA DO LEITO DE PROCUSTO, DE OUTROS MITOS E DE IDEIAS DE GRANDES MESTRES MALBARATADAS PELO ESCREVENTE.
 
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
            Do que escrever em prosa.
 
CESÁRIO VERDE, “Contrariedades”
 
Respeite-se o sentimento do grande Cesário, cada um nasce para a sua arte. “Contrariedades” é um belo poema: dezassete quadras de rima interpolada (ABBA) estruturadas segundo três versos de doze silabas (alexandrinos) com remate de um verso hexassilábico. Foi bom ouvi-lo na sessão da passada sexta-feira do Clube de Leitura.
A opção entre verso rimado e verso branco, como entre verso medido e verso livre, é hoje uma questão resolvida: a rima e a métrica são auxiliares rítmicos do poema, mas são igualmente uma limitação do poeta. Mário de Andrade, vulto grande do Modernismo brasileiro, escreverá em 1922 no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia Desvairada: “Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de sílabas (…) Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela.”
Sem rima nem métrica, o que distingue a poesia da prosa? Disse Shelley que  “a distinção entre poetas e prosadores é um erro vulgar”, acrescentando: “Um poema é a própria imagem da vida, expressa na sua verdade eterna. Uma diferença existe entre uma história e um poema, que é esta: uma história é um catálogo de factos desligados, que não possuem nenhuma outra conexão que não seja o tempo, lugar, circunstâncias, causa e efeito; o poema é a criação das acções de acordo com as formas imutáveis da natureza humana, como existem no espírito do Criador, que é ele próprio a imagem de todos os outros espíritos.” E Edgar Allan Poe não anda longe desta ideia. Segundo ele, a diferença entre poema e romance é que aquele tem por seu objecto um prazer indefinido, enquanto o romance se realiza no domínio do prazer definido. Ou seja: “O romance apresenta imagens perceptíveis com sensações definidas, e a poesia com sensações indefinidas, para cujo fim a música é uma parte essencial, dado que a nossa concepção mais indefinida é a compreensão de um som doce.”
No prefácio-dedicatória de O Spleen de Paris, diz Baudelaire: “Qual de nós não sonhou, nos seus dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, suficientemente maleável e suficientemente contrastante para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”
Não é então da condição perene da poesia nem a rima nem a métrica. O poema pode estar disposto em prosa, a prosa pode ser poesia. Assim o entendeu Wordsworth, para quem a arte verbal abriga, sob uma mesma concepção estética, tanto a poesia metrificada como a prosa artística, sendo que “algumas das partes mais interessantes dos melhores poemas pertencem rigorosamente à linguagem da prosa, quando a prosa é bem escrita.
Confuso? Não será por falta de clareza dos mestres citados; só se for pelo pouco jeito do escrevente que ainda mal entende destas coisas e já se apressa em as “explicar” aos outros. Desculpem-no lá, coitado.   
 
Citações tiradas de:
= BAUDELAIRE, Charles – O Spleen de Paris, tradução de Jorge Fazenda
Lourenço, Relógio de Água Editores, 2007.
= DOLOZEL, Lubomir – A Poética Ocidental, tradução de Vivina de Campos Figueiredo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.
= POE, Edgar Allan – Poética (textos teóricos), tradução de Helena Barbas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
= RIBEIRO, Maria Aparecida – Literatura Brasileira, Lisboa, Universidade Aberta, 1994.
= SHELLEY, Percy – Defesa da Poesia, tradução de J. Monteiro-Grillo, Lisboa, Editores Reunidos, 1996.
= VERDE, Cesário – O Livro de Cesário Verde, Lisboa, Editora Ulisseia, s/d.
 
E em jeito de nota final: safa!, este texto quase tem mais linhas de citações do que de escrita original. Uma verdadeira arte de recorte e colagem!
 
 

3 comentários:

  1. Um exemplo de como se pode fundir cultura com prazer.
    Onde estão afinal os limites? A natureza não dá pulos: provavelmente também não aqui. Onde começa e prosa e acaba a poesia e vice-versa? Que cada um de nós medite sobre o que escreveu já, e conclua.

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  2. Manel,

    Texto muito esclarecedor. Abri-o agora . Lerei com atenção de aprendiz que o sou, sinceramente, na literatura e na vida.

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