Rua da Amargura
(de Fernando Faria)
1. Penso que a escrita, em particular a escrita das nossas memórias, é um ato de íntima exposição (passe a incoerência), e o que desse ato resulta, como estes "Episódios de uma comarca de Província", iluminará para sempre o fio biográfico do seu autor, ocupando um lugar especial na vida que se lhe anuncia pela frente. Confiar a alguém a apresentação pública desse fruto é sinal de estima e consideração pessoal - distinção que muito agradeço ao Fernando Faria. companheiro de muitas e boas e partilhadas leituras no Museu Ferreira de Castro, aqui em Sintra. Como agradeço a todos os aqui presentes por, com essa presença, homenagearem o livro e o autor.
2 . Algumas profissões, mais intensamente do que outras, lidam de perto com os limites da velha condição humana: as misérias, as expectativas, as dores e os deveres... A atividade de magistrado, particularmente numa comarca rural de um país que na década de 1980 respirava os primeiros ares de livre desenvolvimento, é uma delas. Disso só tive noção através da leitura deste testemunho ficcionado, que nos desvenda a partir de dentro, com os recortes e cores de quem a viveu, uma realidade que a maioria de nós só conhece de ouvido, para lá das baias da nossa própria experiência. Pois para isso serve a literatura: para nos trazer à vista aquilo que nós, desarmados de ângulos e perspetivas alheios, sozinhos não alcançaríamos.
3. Sabemos que a Rua (ou as ruas) da Amargura não é lugar onde se recomende demorarmo-nos. É "um vale de lágrimas", "um descer ao fundo do poço", é "ser tido em baixa consideração", diz o Dicionário Criativo na net. Mas esta Rua da Amargura do Fernando Faria percorrem-na 170 páginas que, aos amargos do quotidiano, vêm juntar o "bucolismo da região" (expressão do autor), a ambiência familiar dos cafés de província, o afeto cúmplice entre um cão e o seu dono coxo, a vivacidade das infâncias e até certo dilema ontológico do protagonista...
4. Por acaso, o GoogleMaps aponta-nos umas quantas "Rua da Amargura" em localidades portuguesas (Caldas da Rainha, Machico, etc...). Mas não em Figueiró dos Vinhos. Esta obra vive de uma toponímia fictícia que, parece-me, poupa deliberadamente um elemento incontornável da geografia real: o Zêzere. Respeita-se o grande rio da Estrela e a sua margem direita, já a rondarem o Tejo. Tudo o mais - a Vilar de Prantos onde Feliciano Feijó desagua com a família; o cemitério de Vale Escuro onde desce à terra o corpo do enforcado Serafim; ou o alto panorâmico de Santa Tecla, escolhido por Vitalino Próspero para liquidar a desonra com um tiro na têmpora - são lugares de clara designação figurativa, uma espécie de padroeiros linguísticos da dramaticidade de cada história.
5. Igualmente contêm muito de sugestivo, e até de irónico, os nomes próprios e apelidos atribuídos às personagens. Estas, já agora, são-nos apresentadas numa galeria, que a cada uma faz corresponder um capítulo. As nove vivem o tempo dos telexes, das tamancas, dos Citroën dois cavalos, do êxito Nikita do Elton John...
6. Sobre um cenário natural de "Pinhais ondulantes e sem fim", "vinhedos, pomares, prados", "hortas e canaviais" que beneficiam das águas do Zêzere [e sabe-se lá quanto, de tudo isto, sobrou do tempo entretanto decorrido e dos incêndios de 2017...], desenha-se um quadro social de interioridade rústica, eivado de analfabetismo, desespero, alcoolismo, trabalho infantil e declínio dos ofícios artesãos, como o do sapateiro do Capítulo 7.
7. O primeiro capítulo, dedicado à violência portas dentro, cujas nuances pouco mudaram em quarenta anos, menos mal que relata com vivacidade e humor como os vapores do morangueiro tanto seduziam homem como mulher, resultando num modus vivendi doméstico de "dás mas também levas". E lá está o desfecho a recordar-nos que nem tudo é o que parece...
8. Outras vívidas passagens de humor são o bate-boca entre Gertrudes e Arquimínio frente ao Dr. Delegado, nas páginas 41 a 43, risível apesar do alcoolismo e da pobreza subjacentes; ou o monólogo interior de autorrecriminação de Feliciano Feijó, arrependido do excesso de ética deontológica que o levara a recusar um potezinho de mel ao velho apicultor Salomão Lampreia, última personagem a entrar em cena.
9. Há momentos do livro em que a "realidade" excede a ficção, como se costuma dizer, incorrendo o autor na acusação injusta de faltar à verosimilhança. Um desses momentos é o furto do porco (vivo e vacinado), no capítulo dedicado à personagem Pencas, "uma trave de um metro e noventa" batizado como Expedito Manso Rouxinol. Outro é o suicídio no exato meio geométrico do paredão da Barragem da Feitosa e o corpo de Cesaltina mais tarde pescado com um anzol...
10. O livro de Fernando Faria exprime-se numa linguagem elegante e rica, num estilo que é realista, por vezes cru mas muitas vezes cândido. A natureza também lá aparece, com o ar da sua graça, em descrições da vila encaixada na vertente, da noite de inverno rodeando um lagar de azeite onde decorre um jantar de amigos, etc. Mas surge também prestando um último serviço ao desespero humano, como quando um suicida pede no bilhete de despedida que lhe enterrem o cão debaixo de um loureiro, ou quando a figura de Serafim Baleia se destaca na paisagem, pendendo de uma oliveira.
11. Rua da Amargura tem a legitimidade da vida experienciada e a riqueza de um olhar simultaneamente maduro (do autor que o escreve) e fresco (do jovem magistrado que viveu o ambiente retratado). Mas, saberes profissionais e papeis sociais à parte, este livro do Fernando Faria lembra-me um verso da cantora Mafalda Veiga (do álbum Pássaros do Sul, 1987), verso onde se diz que, acima de tudo, "Nós somos o ser extravasado que o nosso sentir nos dá".
ACC, Sintra, 15Out2021
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