Insanus, de Carlos Querido, é um livro de contos editado em Julho deste ano pela Abysmo.
Anteriormente, o autor publicara Salir de
Outrora (2007), Praça da Fruta (
2009), A Redenção das Águas (2013) e Príncipe Perfeito-Rei Pelicano, Coruja e
Falcão (2015). Se o primeiro destes livros se apresenta como uma pesquisa
em torno de documentos históricos relativos aos coutos do Mosteiro Cisterciense
de Alcobaça, Praça da Fruta é uma
narrativa cuja acção decorre nos nossos dias, remetendo embora para os marcos
históricos fundamentais das Caldas da Rainha (em cuja região nasceu e reside o
autor), enquanto os dois últimos livros são romances históricos em torno das
figuras reais de D. João V e D. João II, ambas com ligações conhecidas ao burgo
caldense.
O conto, género
literário agora trabalhado pelo autor, radica «em ancestrais tradições
culturais que faziam do ritual do relato um factor de sedução e de aglutinação
comunitária» (Dicionário de Narratologia de
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes), processo bem patente em duas obras da
tradição europeia: Decameron, de
Boccaccio (séc. XIV), e Heptameron, de
Margarida de Navarra (séc. XVI). É caracterizado pela concisão, brevidade e unidade de efeito (Allan Poe). Certa crítica realça-lhe a capacidade de criar
uma atmosfera em detrimento da acção.
Os contos de Insanus não têm uma leitura linear e
unívoca. Há a considerar uma história de superfície (em que o estranho ou o
fantástico quase sempre imperam) e outra escondida, de segundo nível, a que não
se acede directamente. Neste sentido, é compreensível que a epígrafe da
colectânea tenha sido retirada de Edgar Allan Poe, autor de contos fantásticos
e teorizador do género literário short
story. São vinte e nove contos narrados na primeira e na terceira pessoa
com as vozes das personagens fundidas no discurso do narrador. Tratando-se de
contos curtos (entre duas a sete páginas), estabelece-se um relação próxima com
o poema, o fragmento e até o sketch, tendo
em conta o humor amargo que transparece em alguns deles. As marcas da
ambiguidade e do inesperado estão presentes nas alusões aos universos paralelos
e às dicotomias sombra/luz e mundo real/mundo fictício. A referência em
diversos textos à figura da “Repartição”, opressora e castradora dos sonhos das
personagens, sugere a dimensão do desejo irrealizado face ao desencanto da vida
quotidiana, trazendo à lembrança o poema “O Funcionário Cansado”, de António
Ramos Rosa, do livro Viagem através de
uma Nebulosa (1960): «Sou um funcionário apagado / um funcionário triste /
a minha alma não acompanha a minha mão» – da mesma forma que a sombra não
acompanha o corpo da personagem do conto “Sombras”, antes se solta dele num
registo paradoxal e inquietador.
Não sendo possível
abordar todos os textos da colectânea, referir-nos-emos de forma breve a
“MitoLógico”, “Legião é o Meu Nome” e “Insanus”.
“MitoLógico” retoma a
imagem do unicórnio de Júlio Pomar, pintura realizada em 1955 para o Café
Central das Caldas da Rainha, já referida pelo autor em Praça da Fruta. Porém, a atenção do leitor é conduzida neste conto para
a lição de Kafka, precisamente a que é dada em A Metamorfose. Com uma diferença assinalável: se o infeliz Gregor
Samson não encontra forma de resolver a sua monstruosa transformação, acabando
por morrer para alívio de toda a família, a inominada personagem de
“MitoLógico” descobre talvez a salvação no relacionamento com a sua colega de
curso. Neste sentido, apesar do final ambíguo, regista-se uma mensagem que
diríamos de esperança. História de recorte fantástico, deve ser vista com mais
propriedade na sua dimensão metafórica e simbólica. O género conto, pela concisão
e brevidade, presta-se à transmissão de um conceito moral ou um exemplo. Vários
títulos testemunham esta aptidão que lhe é normalmente reconhecida: Contos & Histórias de Proveito & Exemplo
(Gonçalo Fernandes Trancoso), Novelas
Exemplares (Cervantes), Contos
Exemplares (Sophia). Em “MitoLógico” há indiscutivelmente uma história de
proveito e exemplo: a do adolescente incompreendido pelos seus progenitores, o
recurso a psicólogos para suprir as consequências da falta de amor, a
necessidade de encontrar fora da família, entre os da sua idade, o amparo que
lhe falta em casa. Há aqui, sob a narrativa de superfície, uma mensagem não
explícita para o leitor desvendar. Aliás, a introdução da letra capital L no
cerne do título, desintegrando a estrutura semântica do vocábulo e transformando-o
no sintagma “mito lógico”, estabelece um paradoxo indiciador de que muito mais há
a ler e a compreender para além da peripécia do aparecimento do corno na testa
do protagonista.
“Legião É o Meu Nome”
representa, de certa fora, um diálogo intertextual com o episódio do geraseno
endemoninhado, segundo os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. De que maneira
pode aceitar um defensor dos direitos dos animais, como é o caso do
protagonista do conto, o sacrifício da vara de porcos a que se acolheu, por
vontade de Jesus, a legião de demónios? O conto questiona a mensagem dos
evangelhos e a insensibilidade do Filho de Deus que deixou afogar no mar os
indefesos animais. Marcos dá-nos conta do desespero dos próprios gerasenos perante
aquele “massacre” de consideráveis consequências económicas (a vara tinha cerca
de dois mil porcos), tendo suplicado a Jesus que abandonasse os seus territórios
(Marcos, 5-17). Assim, a alusão ao hermético episódio dos evangelhos e a
incompreensão dos pastores da Igreja (padre Serafim) perante a crise psíquica
do protagonista traduzem-se numa crítica aos que, confundidos por princípios
religiosos, abandonam os homens à solidão e ao sofrimento sem remédio. Aspecto
interessante deste conto é o facto de a narração se efectuar em registo epistolar
através de carta dirigida pelo protagonista à sua mulher, carta datada de
Rilhafoles, 13 de Maio de 2013 ( curioso, tanto o local como a data), não
faltando mesmo um post scriptum.
Finalmente, “Insanus”, o último conto que dá título à colectânea.
Neste texto, segundo um efeito de mise en
abyme, há um narrador que conta uma história sobre o autor-narrador dos
vinte e oito contos antecedentes. Mais uma vez, estão presentes as alusões a
lugares das Caldas da Rainha (fonte das Cinco Bicas) e da sua região (feira
medieval de Óbidos). É na noite da cidade termal, entre o «cheiro tépido de
cinza e enxofre», que ocorre a revolta das personagens contra o criador que
lhes deu a vida (vida de cão, como se lê em diversos contos). É grande o rol
das criaturas: «um tipo que cheira a cinza, um unicórnio, náufragos, suicidas,
uma mulher que tem o corpo do marido a apodrecer em casa, um pistoleiro sem
nome, dois pregadores, um surfista, etecetera, etecetera» – todas saídas das
páginas do livro. Protestam as infelizes por não lhes ter sido dada uma
existência decente, fazendo-as protagonistas de enredos tristes e desgraçados. O autor-narrador sente-se culpado, tem dúvidas
sobre a legitimidade das histórias e pensa em outras soluções que poderia ter
encontrado para não fazer tão infelizes as suas criaturas. Tomado pelas
dúvidas, talvez se tenha lembrado da conhecida frase de Nietzsche: «Não é a
dúvida, mas a certeza que nos torna loucos»
– ele que havia criado os seus contos
ao abrigo de uma frase peremptória sobre a insânia: I became
insane, with long intervals of horrible sanity. E sente-se aliviado quando por fim amanhece e as
personagens contestatárias desaparecem «para cumprir os enredos que são os seus
destinos».
Pela nossa parte, não
tendo motivo para recear personagens de ficção, ficamos a aguardar com
interesse os próximos contos de Carlos Querido.
Proposta para o segundo semsetre de 2018?...
ResponderEliminarPode ser, Ricardo. Vou perguntar ao Carlos Querido qual o mês que lhe é mais conveniente. Abraço
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