Do primeiro volume de Passageiro Clandestino, diário de Mário Dionísio este ano publicado com um volume de notas de Eduarda Dionísio, retiro o seguinte apontamento relacionado com a sua saída/expulsão do Partido Comunista:
«6.9.56
Manhã e parte da tarde em Sintra com M. L. e a E. Enquanto a Maria vai mostrar o Palácio à Eduarda, longa conversa no café com o F. de C. Percebo a insistência com que ele me dizia há tempos que aparecesse, para conversarmos. Queria saber directamente «do meu caso». É com natural satisfação que o ouço dizer-me a indignação com que repudiou certas apreciações e falsas narrações que alguns «amigos» meus lhe haviam feito a meu respeito. A velha campanha que já não me surpreende nem indigna. Velha, e ao que parece, já tristemente histórica... Nem o F. de C. nem o R. N. - que passou ontem à tarde cá em casa e que, de certo modo, a puxar a conversa - podem compreender nada disto até ao fundo e em toda a sua vastidão. Faltam-lhes pormenores, a experiência real de certas pessoas, que julgam conhecer pelo seu convívio acidental de café. Falta-lhes, além de tudo, um ângulo de visão que, abrangendo por dentro os meus objectivos e os, supostamente iguais, das pessoas de que falam, lhes permita ajuizar em pormenor. Mas há neles qualquer coisa que os não deixa enganarem-se. Sensibilidade? Vontade de justiça? Confiança no homem?»
Muito curioso, e curioso também que o MD, então com 40 anos, não se lembrasse que o FC, com 58, e o Nobre, 53, já tinham visto muito. O Castro, em especial, aquém e além-mar, aquém e além-revolução russa e criação do PCP, cujos dirigentes de então ele conhecia muito bem. Como toda a gente, após a expectativa inicial, em 1917, cedo se percebeu que aquilo descambara. O modo como ele aborda a figura do Lenin (e creio que também do Trótsky, se a memória não me falha) nos anos 20, ou referências posteriores à URSS e aos partidos comunistas, embora menos ásperas do que alguns dos companheiros, mais próximos, como o Jaime Brasil, ou distantes, como o MJSousa mostra que ele(s) não tinham ilusões quanto ao sistema. O resto é da natureza humana.
ResponderEliminarFico bem satisfeito com a aparição desse Passageiro Clandestino, de que até agora creio só haviam sido publicados excertos, não é verdade? Abraço!
Não se trata de uma questão de idades, experiência ou conhecimento do processo revolucionário russo ou da formação do Partido Comunista. O MD é que estava lá dentro e sabia o que se passava: as duas longas cartas que lhe foram escritas em 1952, presumivelmente por Manuel Campos Lima, para o demoverem da sua vontade de se desligar de militante e passar a simples simpatizante (portanto, nem sequer se tratava de desertar para outro campo) por desejo de prosseguir livremente o seu trabalho criativo como escritor e pintor. MD conta na “Autobiografia” que alguém de dentro do Partido lhe disse: «Nunca mais farás nada». E depois tudo o que sobre ele lançaram, no domínio da crítica, aquando da publicação de “A Paleta e o Mundo” (Mário Sacramento, Óscar Lopes), a de que o autor mudara de doutrina e que abandonara o «caminho comum». E as mentiras espalhadas entre os militantes mal informados, como a de que “falara” e metera muita gente dentro, quando, como é sabido, nunca estivera preso. Assim, não autorizando a sua passagem a simpatizante, a única saída encontrada foi expulsá-lo do Partido.
EliminarAbraço!
Sim, só excertos, mas agora vai sendo publicado. O volume II e respectivas notas já está em preparação.
EliminarCaro,
EliminarO processo de desqualificação do "dissidente" é velho e revelho; faz parte do método, e nem se quer é de origem nacional; já vem do velho Marx e foi bastante aprimorado pelo Lenin. E continua até hoje, 2021. Ainda há pouco dois casos tiveram eco nos jornais, em torno de divergências públicas, ficando nós, público, a "saber" que um teria problemas de alcoolismo e outro desviara fundos. E não vamos mais longe: fale-se no Carlos Brito, um homem que tenho por impoluto. A versão que se sopra é a de que o homem (que sacrificou uma juventude potencialmente muito confortável a um ideal), depois de velho "renegara" em nome não sei de que negócios.
Aliás, temos o triste caso -- felizmente sanado de forma exemplar por ambos, décadas mais tarde, dos ainda jovens Ferreira de Castro e Rodrigues Miguéis, em que a insinuação soez foi utilizada, como vem no meu livro.
Sobre esse "anátema", eu li-o, na altura, como lançado pelo Cunhal -- a lógica do relato isso indica; aliás, o mesmo, "ipsis verbis", é escrito pela Zita Seabra nas suas memórias, aqui atribuídas sem subterfúgio ao Cunhal.
O Óscar Lopes... muito inteligente e informado, a quem o Sena, seu cunhado, chamou uma "puta" -- supõe-se que ideológica.
Enfim, outros tempos, pequenas misérias, mas que tiveram consequências graves para muitos. É por isso que eu, não gostando da personagem, até aprecio a violência desmesurada do Vergílio Ferreira, esse da mesma geração, que seguia o conselho do padre Miguel, meu professor de desenho, que me reprovou sempre: "para bruto, bruto e meio". Assim pensavam duas vezes antes de se meterem com ele. O Alexandre Pinheiro Torres, mais propagandista que crítico, teve de arrostar com o beirão...
Grande abraço!
Pois, o meu saber não é de experiência feito, andei sempre pela borda do lago, nunca entrei nas águas... O Sartre de Fontanelas merece a minha admiração como romancista, mesmo com aquela história do Cavalo Degolado que virou Manhã Submersa... Relativamente às misérias partidárias, são faladas as traições, denúncias, orgias sectárias, etc., até o Régio que as não viveu, mas sabia delas, arranjou maneira de recriar em ficção as práticas dos militantes "avançados" , é ver o volume V de A Velha Casa. Sobre Mário Dionísio, é um caso raro ou único de "dissidente" que foi comunista até ao fim. E agora, transpondo para os dias que correm, faço votos que não se desgracem, domingo, na festarola das urnas. Estou disposto a dar-lhes a minha ínfima ajuda, com a tal cruzinha inscrita no boletim, mais não está na minha mão...
EliminarTem que me contar essas.
EliminarQuanto ao caso do Mário Dionísio, há outros, talves não muitos, além dos dissidentes que deixaram de o ser. Explicações, só caso a caso...
Domingo, talvez me estreie em branco numas autárquicas, oara a Cãnara e Assembleia. No entanto, reservo uma cruz para a minha freguesia.
Soube-me a champanhe borbulhante toda esta leitura.
ResponderEliminarQuem é capaz de enfiar, no mesmo saco sujo, um antigo lutador anarco-sindicalista ou um fanático de um regime castrador (que aquele combateu) - como eu vi fazer - é capaz de abocanhar até o melhor amigo, se ele não chocalhar a cabeça para cima e para baixo como tonto chocalho.