26 de junho de 2024

101 poemas portugueses - #43

 

ARTE POÉTICA


A poesia do abstracto...
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada.
É melhor...
Uma ideia
Só como sangue de problema;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa
E prometer é arquear
A grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
Secura;
Perde --
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia...
Por isso, não:
Nem o abstracto nem o concreto
São propriamente poesia.
A poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.

Vitorino Nemésio (Praia da Vitória, 1901 - Lisboa, 1978)

O Bicho Harmonioso (1938)

3 comentários:

  1. Já prediquei sobre «o reino do abstracto» e «a consciência do concreto». Foi em 2017, na mira de "presencistas" e neo-realistas. As coisas que um homem é capaz de fazer!

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  2. “O abstrato é sempre redução”. Será? Pensei que fosse a percepção infinita do concreto, a sua expansão para outros patamares de existência mental. O concreto sobrevive no preto, no branco e nos seus tons intermédios. O abstrato sintetiza isso e vai para além disso permitindo novas e originais concepções do concreto. Poesia é isso…
    Mas, se pensarmos o humano tal como é, naturalmente reduzido e redutor na sua deplorável condição finita, limitado por todos os lados pela linguagem, então tudo é secura e já morreu à nascença. E poesia é isso…
    O Vitorino tem razão e não tem. E esta afirmação é abstratamente concreta ou concretamente abstrata.

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