15 de outubro de 2012

ANNO DOMINI 1348

Estive directamente envolvido na (a)parição do Anno Domini 1348 (Prémio Ferreira de Castro / 1989), por razões profissionais. Há mais de vinte anos já...
Releio-o passado todo este temp -- e que bem se porta o livro, que bem ele se aguenta! O que é ainda mais digno de registo, tendo esta sido a primeira obra de ficção publicada por Sérgio Luís de Carvalho, então um jovem medievalista sem nome na ficção, ao contrário do que hoje sucede.

Em três penadas, o que registei no fim desta esplêndida releitura:
1) A história social e mental medieval está presente sem que o historiador surja como um intruso no trabalho do ficcionista. A informação é-nos dada (com fidedignidade, acrescento) currente calamo, afastando a desagradável sensação de ter sido despejada no meio da acção, por didactismo ou excesso de especialização. Não há aqui outro imperativo que não seja o da boa economia narrativa.
2)  O protagonista, João Lourenço, tabelião que realmente existiu em Sintra e foi vitimado pela Peste Negra, como o atesta a documentação da época (três fragmentos são publicados no final, em apêndice), passa a última semana de vida a redigir o testamento, pretexto para uma rememoração do tempo perdido: a infância, a aprendizagem do tabelionado, o amor, os acidentes em que a vida de todos nós é fértil.  É uma personagem com densidade psicológica; interpela Deus, e nesse diálogo evidencia-se uma moderna (e propositadamente anacrónica) consciência de individualidade -- como será moderna a consciência da humanidade do Outro que se verifica em relação aos judeus. A propósito, o episódio da judiaria de Sintra é um dos momentos do livro, que nunca baixa o patamar elevado em que o autor soube colocar a narrativa.
3) Sendo um romance, no que respeita à bibliografia sintrense, Anno Domini 1348 é uma obra que nela fundamente se inscreve. Não é impunemente que se recria o passado de um modo tão contemporâneo.

Transcrevo parte da crítica de Daniel Bermond, na revista Lire de Novembro de 2003 (Le Bestiaire Inachevé, na tradução francesa), que encontrei no sítio do escritor: «Transparece destas páginas fortes uma gravidade que sustenta a graça de um língua que poderia se a adas orações e dos salmos. Uma pequena obra-prima de uma austeridade sumptuosa.»

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