Latente, aparentando magma sonolento, sob uma crosta
que se julga intransponível, a questão do celibato eclesiástico vai eclodindo
ao longo dos tempos, conduzindo a discussões teóricas no seio da sociedade. A
filosofia e a lógica fazem, por vezes, esquecer, no entanto, que o Homem não
é só razão.
Em Beto e Arlinda, reedição em
livro pela Bibliotrónica Portuguesa de textos diarísticos, Pedro da Fonseca,
sacerdote, assume o ato corajoso de trazer à nossa consciência um grito
angustiado de revolta contra o celibato imposto, através de um voto
precocemente arquitetado.
Mais justo que falar dele, ouçamo-lo:
«Aos 20 anos… … que dificuldade é que há em obter um sim, ao cabo de uma semana, meses, anos, em que não houve o contacto do mundo exterior?! Isto, após longo
tempo de vida conventual, em que se apresenta, não o mundo real em que há de
viver-se, mas um panorama que gera o olvido para as grandes realidades em que
havemos de imergir. Hesitará o sujeito em dizer, sinceramente, que disponham
dele? Não foi o indivíduo previamente anestesiado, a fim de lhe arrancarem o
sim desejado?!
Ó Deus e Senhor, é lá possível que Vós aproveis sistemas desta ordem?! Estou
convencido, agora mais que nunca: sou livre para amar».
«É humano e justo que haja dois infernos?! Um na outra vida, logo após a
morte; outro, nesta ainda, lutando ingloriamente por deveres e princípios que
os homens impuseram, fazendo-se mais senhores que o próprio Senhor. .. …Quem
lhes outorgou autoridade para espezinhar os sonhos legítimos e multiplicar as
graves dificuldades em que a vida abunda?!».
«Amando, amado e condenado à mais aviltante solidão! Haverá perdão para tanta
afronta aos desígnios de Deus sobre o amor humano?!».
«Compreendestes agora o que me fizestes?!».
«Apenas o Papa, em suma compreensão, daria rumo novo à existência
amarfanhante».
Mas Beto e Arlinda, como o título
sugere, é sobretudo uma história diária de amor vivido, esmagado entre o voto
feito, que se quer cumprir, e a convicção do direito a assumi-lo e a realizar-se através dele. Esmagado, enfim, pela batalha perdida contra as normas morais, a pressão familiar e social.
O drama interior traz-nos à mente Abelardo e Heloísa, Pedro e Inês, Romeu e
Julieta, mas em circunstâncias de violência perpetrada contra o próprio. Tudo isto com uma riqueza de linguagem cuidada e rigorosa.
Experimente ler: ficará a compreender um mundo diferente do que conhece.
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