22 de julho de 2024

101 poemas portugueses - #46

 

OUTRA CANTIGA


O querer e não querer

são bocas da mesma fome.

Mas há pão que é de comer

e outro só o nojo o come.

Cravos de chaga sangrando

não alimentam ninguém.

Até onde e até quando

só o que é mal será bem?

Sofre, coração desfeito.

Coração desfeito, espera.

Tudo o que existe perfeito

em imperfeições se gera.


Armindo Rodrigues (Lisboa, 1904-1993)

17 de julho de 2024

o início de NADAR PARA CASA

«Quando Kitty Finch tirou a mão do volante e lhe disse que o amava, ele já não sabia se ela estava a ameaçá-lo ou a ter uma conversa com ele.» Deborah Levy, Nadar para Casa [2011], tard. Ana Saldanha, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2013, p. 13. 

14 de julho de 2024

POEMAS LIDOS E RELIDOS

 

Deixo aqui o poema de António Gedeão (1906-1997) lido na última sessão do clube: “Carta aberta”, desse livrinho cuja capa se apresenta na foto. Edição do autor, comprei-o em 67 ou 68 na Livraria Sá da Costa, de Lisboa. Ainda há restos da etiqueta da livraria e apresenta, escrito a lápis, o preço fabuloso de 25 escudos.

O poema – uma “arte poética”, isto é, conjunto de prescrições para o fazer poético – foi concebido em oitavas de verso livre com rima. A primeira oitava de esquema ABABCDCD e a segunda ABBACDDC. Sendo hoje domingo, não fica mal falar-se destas coisas... E, como parece recomendar um nosso colega nos seus comentários, sede felizes, felizes... com a poesia 😉

 

CARTA ABERTA

 

Um homem progride, blindado e hirsuto

como um porco-espinho.

É o poeta no seu reduto

abrindo caminho.

Abrindo caminho com passos serenos

e clava na mão,

que as noites são grandes e os dias pequenos

nesta criação.

 

Esmagando as boninas, os cravos e os lírios,

cortando as carótidas às aves canoras.

Chegaram as horas

de acender os círios,

de velar as ninfas no estreito caixão,

de enterrar as frases e as vozes incautas,

de oferecer a Lua para os astronautas

e as rosas fragantes à destilação.


12 de julho de 2024

101 poemas portugueses - #45

 

TARDE DE INVERNO


Sobre o planalto adormecido

Num frio leito de inverno,

Agasalhado de brumas,

Um Sol terno,

Distraído...

 

De longe, a montanha sombria

Exala uma aragem fria.

 

Cheira a serra,

A terra,

Morta...

 

Mas com seu odor mais forte,

Ao apelo do vento norte

Responde

A minha melancolia...

 

 

Numa colina humilhada

De chuva, de ventanias,

Crucificado num céu dorido,

Surge um pastor como um vencido.

        Em fila, atrás,

Vem o rebanho humílimo balindo;

        Traz nos olhos a paz,

        A paz grave da serra;

E entre os dorsos compactos, de lã fina,

Paira a sombra primeira aventurosa,

O alvoroço da noite misteriosa,

        O pranto da neblina!...


Fausto José (Aldeia de Cima, Armamar, 1903-1975),

presença #18, Coimbra, 1928

4 de julho de 2024

101 poemas portugueses - #44

 

A PALAVRA


Só conheço, talvez, uma palavra.

Só quero dizer uma palavra.

A vida inteira para dizer uma palavra!

Felizes os que chegam a dizer uma palavra!


Saul Dias 

(nome poético do pintor Júlio Maria dos Reis Pereira, Vila do Conde, 1902-1983)

Vislumbre (1979)


Júlio, s/título (1939)