15 de outubro de 2024

"INSOLÚVEL FLAUTIM"




Provavelmente, para alguns leitores e visitantes, o que venho partilhar não será novidade.

O certo é que, esta manhã, ao fazer a minha habitual visita à loja da Bertrand do Allegro de Sintra, dei com este novo romance de Miguel Real (aliás, apetitoso). E não é que uma das primeiras páginas é ocupada com este poema do nosso ilustre confrade do C.L.M.F.C., Manuel Nunes, sendo encimada com a nota: "O mais belo poema sobre Jesus escrito em Portugal em 2023".

Muito justo destaque. Mais do que um privilégio, é um orgulho para mim partilhar aquele cenáculo com Manuel de Matos Nunes! 
 

14 de outubro de 2024

Pedra de toque #3

«Ele pertencia à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo como arrozeiros sabidos e safos de mândria.» 

Alves Redol, Gaibéus, 1939

11 de outubro de 2024

Pedra de toque #2

«E era o único grito que quebrava o silêncio, também volátil, das velhas árvores em êxtase.» 

Ferreira de Castro, Emigrantes, 1928

10 de outubro de 2024

Pedra de toque #1

«A água vinha de longe por uma caleira de pedra, e era sua uma toada tão leda e inquebrantável, que parecia mesmo a pulsação do silêncio.» 

Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa, 1918

5 de outubro de 2024

Poesia Portuguesa (04)

 VII

Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos ...

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há maior orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas ...

... Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros.



José Gomes Ferreira em "Poesia I"
Heróicas 1936. 1937. 1938
Portugália Editora
3ª edição, Março de 1967
Páginas 108 e 109

4 de outubro de 2024

o início de GENTE COMUM - UMA HISTÓRIA NA PIDE

«O meu nome é Aurora Rodrigues», Aurora Rodrigues, Gente Comum -- Uma História na Pide, 2.ª ed., introduções de Paula Godinho e António Monteiro Cardoso, Lisboa, Parsifal , 2022.

2 de outubro de 2024

101 poemas portugueses - #50

 

POEMA DO CÃO AO ENTARDECER


Um cão no areal corria presto.

Presto corria o cão no areal deserto.
 
Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.
 
Corria em linha recta, presto, presto,
pela orla do mar.
Pela orla do mar, em linha recta,
corria presto, o cão.
 
Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha recta
pela orla do mar.
 
Sem princípio nem fim, em linha recta,
pela orla do mar.
 
Era ao entardecer,
na hora espessa, peganhenta e húmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha recta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha recta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as rectas que se dizem paralelas.
 
Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.
 
Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.
 
Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha recta mais suposta
que o areal e o mar.
Mas presto, presto, sempre presto, presto,

ia correndo o cão no areal deserto.


António Gedeão (1906-1997), Poemas Póstumos (1983)

23 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #49


RECREIO


Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...


Alberto de Serpa (Porto, 1906-1992), 

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler (1956)

16 de setembro de 2024

13 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #48


NASCIMENTO


A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia...

Cá fora, 
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.

Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.

Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos 
Ia surgindo à porta,
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos, imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Pra logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.

Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.


Francisco Bugalho (Porto, 1905 - Castelo de Vide, 1949)

presença #51, Coimbra, Março de 1938,


6 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #47


OCEÂNIAS


Ondas do mar me deitaram
sobre o calor das areias
que ao meu corpo se moldaram
pra aquecer as minhas veias.

E aquele corpo de escrava
dando-me força a vencia
pelo gozo que me dava
para o gozo que sofria.

A noite vinha a descer
e subia a maré-cheia...
Eu já tinha o meu poder:
fugi à praia, deixei-a.

Foi assim que regressei
das conquistas do mar bravo,
e ergui palácios de rei
sobre refúgios de escravo.


Branquinho da Fonseca (Mortágua, 1905 - Malveira da Serra,  Cascais,1974),

in presença #7, Coimbra, 8-XI-1927

27 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (5)

 

HORICLOR

 

Caem das gargantas negras as plumas

com que Horiclor se enfeita e se perfuma.

O tempo ondula a sua face lisa

em que pousam os pássaros anónimos.

Ele lava os presságios e o motor da aurora

e desafia o vazio com um arco-íris de nomes.

A partitura do vento, dos eclipses e distâncias

é um jogo em suas mãos de embriagado aeronauta.

Quando o silêncio da terra é absoluto

desenha ovelhas ou apenas uma árvore.

Outras vezes faz tremular uma bandeira de miséria

e sonho. Ele sabe onde se esconde a flor que nasce

do sexo das sereias e conhece a eloquência das magnólias.

Às vezes deseja que sopre um vento desesperado e se apaguem as estrelas

e um túmulo se abra com uma onda no meio.

O seu pensamento é inundado por rios subterrâneos

e as suas palavras brotam de uma pequena lâmpada situada no horizonte.

Então o vento abre os olhos e as torres incendeiam-se.

 

ANTÓNIO RAMOS ROSA – Nomes de Ninguém (1997)


24 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (4)

 

A vida foi inteira nesse segundo dia

quando a tarde veio em âmbar

sobre os corpos e as paredes,

a amortecer o tempo,

a distrair a morte.

 

Tu foste planura e estuário

e os pássaros buscaram abrigo

no halo azul dos teus gestos.

 

O teu corpo foi mapa de arquipélagos

e nele dispus medos e abismos,

noites, naufrágios.

 

         O cansaço foi cálido como o barro

           de que deus te fez no segundo dia,

           depois de separar águas e céus.

 

JOSÉ RUI TEIXEIRA - Aware (2024)


23 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (3)

 

AMOR

 

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amor o amor de amar não sabem,

como não amam se de amor não pensam

os que de amar o amor de amar não gozam.

Amor, amor, nenhum amor, nenhum

em vez do sempre amar que o gesto prende

o olhar ao corpo que perpassa amante

e não será de amor se outro não for

que novamente passe como amor que é novo.

Não se ama o que se tem nem se deseja

o que não temos nesse amor que amamos,

mas só amamos quando amamos o acto

em que de amor o amor de amar se cumpre.

Amor, amor, nem antes, nem depois,

amor que não possui, amor que não se dá,

amor que dura apenas sem palavras tudo

o que no sexo é o sexo só por si amado.

Amor de amor de amar de amor tranquilamente

o oleoso repetir das carnes que se roçam

até ao instante em que paradas tremem

de ansioso terminar o amor que recomeça.

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amar o amor de amar o amor não amam.

 

JORGE DE SENA - Peregrinatio ad loca infecta (1969)


17 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (2)

 

OS QUE SE AMAM

 

Os que se amam nem sempre estão juntos. Sabemos

que é assim. Os passos que dão seguem um caminho

ignorado para quem os surpreenda a noite

ou o límpido nevoeiro de um pressentimento

que neles existe. Às vezes, falamos acerca de Romeu

porque nos esquecemos de Julieta, mas sempre ambos existiram

nas suas sombras que eram afinal só uma. As mãos

ficaram estendidas e o ar tornou-se mais leve

para o respirarem dentro de uma flor. Não podia ser

de maneira diferente. Mas perguntamos agora se é o mesmo túmulo

que os deixa separados. O tempo passa e depois chega

o esquecimento. «Meu amor», e são estas as duas palavras

que foram pronunciadas. Qualquer nuvem sobre uma casa em ruínas

fica maior. É aí que Eva espera por Adão, Heloísa por Abelardo, Charlotte

por Werther. Elas entreabrem os seus olhos para dizer

«o que murmuraste?» Havemos de escutar estas palavras

tão simples como a água ao correr entre os dedos, único

anel que lhes foi dado para sempre. E a mesma pergunta

é a nós que se dirige, até se compreender que somos

o outro, alguém que aparece para trazer consigo

uma esperança possível, esta ternura que foi mantida

em segredo e também um pouco de ciúme: não passamos

nós tantas noites com Charlotte, Eva, Julieta ou Heloísa

como se fôssemos tocados por um sereno desgosto

ao despertar agora no jardim que há numa página

que se desfolha? À sua volta o amor deixou espalhadas

estas manchas de fecundidade, o leve

sémen que principia a descer e é capas de decifrar

o segredo de um encontro esperado há muito. Assim é o corpo

de todos aqueles que amam. A morte veste-os.

 

FERNANDO GUIMARÃES - Junto à Pedra (2018)


16 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (1)

 

RAPARIGA DAS TRANÇAS

 

Rapariga

bonita

bem sei o que esperas

e as esperanças

que pões

nos laços das tranças

 

Bem sei porque ris

sem se ver porquê

nem para quem nem para quê

Bem sei porque enfuna

a tua saia transparente

e porque se solta

a música e o mar

do balouçar

das tuas tranças

 

Andando danças

andando danças

andando danças

 

E pensar rapariga nas ciladas

que te estão há tanto tempo preparadas

na vida sem vida

que te hão-de querer

 

Não és tu quem faz contas

por trás da janela

nem tu que te julgas

um livro de cheques

(ainda não

ainda não)

 

Ah as saias pesadas para a terra

e os braços

sem vigor

Ah o rosto cortado de cansaços

Ah o enjoo dessa palavra amor

Ah o sono logo em cima do jantar

e a bicha do carvão a bicha do carvão

a bicha do carvão

 

Rapariga

bonita

de fita encarnada

hão-de algemar-te

os lábios

os seios

a música e o mar

de braços atados

 

Oh rapariga

de fita amarela

dá-te ao minuto

o sol é bom

salta a janela

que nunca mais este minuto voltará

 

Rapariga bonita

que andando danças

rapariga bonita

bonita bonita

de laços nas tranças

 

MÁRIO DIONÍSIO – As Solicitações e Emboscadas (1945)


22 de julho de 2024

101 poemas portugueses - #46

 

OUTRA CANTIGA


O querer e não querer

são bocas da mesma fome.

Mas há pão que é de comer

e outro só o nojo o come.

Cravos de chaga sangrando

não alimentam ninguém.

Até onde e até quando

só o que é mal será bem?

Sofre, coração desfeito.

Coração desfeito, espera.

Tudo o que existe perfeito

em imperfeições se gera.


Armindo Rodrigues (Lisboa, 1904-1993)

17 de julho de 2024

o início de NADAR PARA CASA

«Quando Kitty Finch tirou a mão do volante e lhe disse que o amava, ele já não sabia se ela estava a ameaçá-lo ou a ter uma conversa com ele.» Deborah Levy, Nadar para Casa [2011], tard. Ana Saldanha, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2013, p. 13. 

14 de julho de 2024

POEMAS LIDOS E RELIDOS

 

Deixo aqui o poema de António Gedeão (1906-1997) lido na última sessão do clube: “Carta aberta”, desse livrinho cuja capa se apresenta na foto. Edição do autor, comprei-o em 67 ou 68 na Livraria Sá da Costa, de Lisboa. Ainda há restos da etiqueta da livraria e apresenta, escrito a lápis, o preço fabuloso de 25 escudos.

O poema – uma “arte poética”, isto é, conjunto de prescrições para o fazer poético – foi concebido em oitavas de verso livre com rima. A primeira oitava de esquema ABABCDCD e a segunda ABBACDDC. Sendo hoje domingo, não fica mal falar-se destas coisas... E, como parece recomendar um nosso colega nos seus comentários, sede felizes, felizes... com a poesia 😉

 

CARTA ABERTA

 

Um homem progride, blindado e hirsuto

como um porco-espinho.

É o poeta no seu reduto

abrindo caminho.

Abrindo caminho com passos serenos

e clava na mão,

que as noites são grandes e os dias pequenos

nesta criação.

 

Esmagando as boninas, os cravos e os lírios,

cortando as carótidas às aves canoras.

Chegaram as horas

de acender os círios,

de velar as ninfas no estreito caixão,

de enterrar as frases e as vozes incautas,

de oferecer a Lua para os astronautas

e as rosas fragantes à destilação.


12 de julho de 2024

101 poemas portugueses - #45

 

TARDE DE INVERNO


Sobre o planalto adormecido

Num frio leito de inverno,

Agasalhado de brumas,

Um Sol terno,

Distraído...

 

De longe, a montanha sombria

Exala uma aragem fria.

 

Cheira a serra,

A terra,

Morta...

 

Mas com seu odor mais forte,

Ao apelo do vento norte

Responde

A minha melancolia...

 

 

Numa colina humilhada

De chuva, de ventanias,

Crucificado num céu dorido,

Surge um pastor como um vencido.

        Em fila, atrás,

Vem o rebanho humílimo balindo;

        Traz nos olhos a paz,

        A paz grave da serra;

E entre os dorsos compactos, de lã fina,

Paira a sombra primeira aventurosa,

O alvoroço da noite misteriosa,

        O pranto da neblina!...


Fausto José (Aldeia de Cima, Armamar, 1903-1975),

presença #18, Coimbra, 1928

4 de julho de 2024

101 poemas portugueses - #44

 

A PALAVRA


Só conheço, talvez, uma palavra.

Só quero dizer uma palavra.

A vida inteira para dizer uma palavra!

Felizes os que chegam a dizer uma palavra!


Saul Dias 

(nome poético do pintor Júlio Maria dos Reis Pereira, Vila do Conde, 1902-1983)

Vislumbre (1979)


Júlio, s/título (1939)


26 de junho de 2024

101 poemas portugueses - #43

 

ARTE POÉTICA


A poesia do abstracto...
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada.
É melhor...
Uma ideia
Só como sangue de problema;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa
E prometer é arquear
A grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
Secura;
Perde --
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia...
Por isso, não:
Nem o abstracto nem o concreto
São propriamente poesia.
A poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.

Vitorino Nemésio (Praia da Vitória, 1901 - Lisboa, 1978)

O Bicho Harmonioso (1938)

21 de junho de 2024

101 poemas portugueses - #42

 

MEU MENINO, INO, INO


1

 

Dos versos que exprimem,

Estou cansado!

 

Das palavras que explicam,

Estou cansado!

 

Ai, embala-me, fútil, e frágil, no ó-ó dos teus versos,

Ai, encosta-me ao peito...!

 

Mais não quero que ser embalado.

 

 

2

 

O menino está doente...

-- Diz a mãe.

 

Qui-é qui-é

Que o menino tem?

 

Ai...!

Diz o pai.

 

A criada velha chora pelos cantos

E reza a todos os santos...

 

Afirma o senhor doutor

Que amanhã que está melhor.

 

O pai suspira:

-- Quem sabe lá?!

 

E o menino diz:

-- Papá...!

 

A mãe chora:

-- Quem já me dera amanhã...!

 

E o menino diz:

-- Mamã...!

 

E, com a febre, rezinga,

E choraminga,

Olhando a lua amarela

Como uma vela:

-- Quero aquela péla...!

 

Mas o Pai do Céu sorri:

-- Vem cá vê-la!

É para ti.

 

 

3

 

-- Acabaste?

 

-- Meu amor, acabei.

 

-- Apagaste a candeia? apagaste?

 

-- Meu amor, apaguei.

 

- E fechaste o postigo? e fechaste?

 

- Meu amor..., sim, fechei.

 

-- Que rumor é aquele? não sentes?

 

-- Meu amor, que te importa?

É a vida a dar socos na porta.

É lá fora. São eles. É o mundo. São gentes.

 

-- São gentes? Quem são?

 

-- São colegas, amigos, parentes...

 

-- Vai dizer-lhes que não! Vai dizer-lhes que não!


José Régio (Vila do Conde, 1901-1969)

As Encruzilhadas de Deus (1936)

18 de junho de 2024

25 poemas passados para português - #25


À ESPERA DOS BÁRBAROS


O que esperamos nós em multidão no Forum?

Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, sùbitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.


Konstantínos Kaváfis (Alexandria, 1863-1933)

versão de Jorge de Sena (1919-1978), in Constantino Cavafy,  90 e Mais Quatro Poemas 

daqui - https://lsoares.blogs.sapo.pt/c-p-cavafy-a-espera-dos-barbaros-1162386 

17 de junho de 2024

o início de CANÇÃO DOCE.

 «O bebé morreu.» Leïla Slimani, Canção Doce [2016], trad. Tânia Ganho, Lisboa, Alfaguara, 2022, p.11.

14 de junho de 2024

"FERREIRA DE CASTRO - Uma biografia" vol, 1, de Ricardo António Alves, edição do Centro de Estudos Ferreira de Castro

 

Apresentação amanhã, às 16 horas, no Museu do Neo-Realismo, em VFX. 

Na p. 36, referindo a genealogia de Ferreira de Castro, admite-se que o escritor de Ossela seja descendente de um filho bastardo de D. Dinis, D. Afonso Sanches, poeta trovador, do qual se encontra em 


https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=784&pv=sim


esta curiosa, ainda que incompleta, cantiga de escárnio e maldizer. Leia-se com a nota junta esclarecedora do texto.

 

CANTIGA DE AFONSO SANCHES

 

Afonso´Afonses, batiçar queredes

vosso criad´e cura nom havedes

que chamem clérig; en´esto fazedes,

aquant´eu cuido, mui maao recado;

ca sem clérigo, como haveredes,

Afonso’Afonses, nunca batiçado?

 

Nota:

Só esta estrofe chegou até nós de uma cantiga em que D. Afonso Sanches satiriza um tal Afonso Afonses, a propósito do batismo de um seu criado. Tudo indica, no entanto, que a cantiga se basearia num equívoco sobre quem é que nunca teria sido batizado - e que seria o próprio Afonso Afonses, pelo que se depreende do v. 6.

 

 

13 de junho de 2024

101 poemas portugueses - #41


INTANGÍVEL 


«Nuvem, sonho impalpável do desejo»

ANTERO.

Essa que eu amo e beijo e não existe,
embora exista em mim que a beijo e amo,
nunca há-de vir um dia em que eu a aviste,
nunca a voz hei-de ouvir-lhe quando a chamo.

Mas não me fugirá. Por mais que diste
quando eu a sua ausência já proclamo,
assim que me percebe fraco e triste
volta, e eu volto a sentir-me escravo e amo.

Sei que é uma visão, sei que a componho
eu mesmo, à semelhança do meu sonho,
dando-lhe a luz fictícia que ela emite.

Mas se à minha alma pode enfim bastar
essa alma ideal, -- o meu sedento olhar,
esse procura um corpo onde ela habite.


Francisco Costa (Sintra, 1900-1988),
Verbo Austero (1925)

5 de junho de 2024

ENIGMA


I

Ao madrugar põe-se o PÔR-DO-SOL

No FIM DO MUNDO – Nunca se sabe

Quando vier a tempestade vem a bonança

 

II

Assim canta El-Rei

Bem ou Mal todos sabem quem é a Lua

 

III

Estamos a chegar à Primavera…

Eu estou ao pé de ti

Algo acontece aliás acontece um pouco de tudo.

 

--- JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS, Águas, Memórias, “Cadernos de Santiago”, Lisboa, Âncora Editora, 2021

 

Poema cujo sentido oculto me foi desvendado na passada segunda-feira, 3 de Junho.

 

101 poemas portugueses - #40


A CORRENTE


Lá vão as folhas secas na corrente...
Lá vão as folhas soltas das ramadas...
Hastes envelhecidas e quebradas
galgando as asperezas da vertente.

A cheia arrasa os frutos e a semente,
a terra inculta, as várzeas fecundadas,
e vai perder-se, ao longe, nas quebradas,
numa fúria cruel e inconsciente.

Em nós ainda é mais funda, ainda é mais vasta,
esta ansiedade enorme e sem perdão,
que nos fere, nos tolhe e nos devasta...

As árvores desprendem-se e lá vão...
Mas nós ficamos porque nada arrasta 
as raízes fiéis dum coração.


Fernanda de Castro (Lisboa, 1900-1994)

Jardim (1928)