7 de janeiro de 2013

Dois ou três lugares-comuns a pretexto duma obra maior

     Gostaria de escrever aprofundadamente sobre este livro de Primo Levi, mas não me é possível. Não posso, por outro lado, deixar de me referir a uma das melhores obras que vieram a debate no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro.
     Assim, com toda a disposição mas pouco tempo, direi a primeira banalidade: a ficção realista é sempre ultrapassada pela realidade, trate-se de um ambiente concentracionário na floresta amazónica (A Selva, de Ferreira de Castro), uma migração colectiva na América da Grande Depressão (As Vinhas da Ira, de John Steinbeck) ou uma exploração mineira em França (Germinal, de Émile Zola).
Se Isto É um Homem, de 1947, é um relato verídico de um sobrevivente, escrito ao longo de mais de um ano, tão intensamente vivo como profundamente meditado. E, por isso, o horror pôde ser descrito com objectividade, a benefício da narrativa, que não se deixa seduzir pela magnitude do tema (a vivência do próprio autor no infame campo de Auschwitz, até à libertação pelas tropas soviéticas, em Janeiro de 1944), conduzindo a narrativa porventura com uma grandiloquência que só a prejudicaria. Como Levi é um grande escritor, serve o texto com absoluta mestria, num estilo contido e recurso frequente a frases curtas, remates de períodos que nos deixam k.o.
Se Isto É um Homem: a condição simultaneamente trágica e patética do bicho-homem que conhecemos de nós próprios, mas que aqui outrém -- o autor -- revela. E, embora revelando-se, apenas o faz parcialmente, pois o autor/narrador fala de um eu que só em determinados e ocasionais momentos o é, porque do que se trata é a confirmação à outrance, e pelos meios conhecidos, do desiderato dos alemães nesta perseguição insana: a de retirar os judeus da humanidade -- não apenas exterminando-os, mas, naqueles que não eram desde logo executados, esvaziando-os dessa mesma humanidade, como que para comprovar teorias rácicas tão dementes quanto extraordinariamente estúpidas (um racista biológico, quando não for um doido varrido, será sempre um cretino, ignorante e por vezes perigoso).
    

à margem, mas a propósito

Outro lugar-comum, que por o ser não é menos verdadeiro, é o da natureza excepcionalmente maligna do feixe de ideias imbecil e mal cozinhado que foi o nacional socialismo, pior do que o estalinismo, na medida em que este, entre outras coisas, pintava o despotismo com as cores do humanismo (como embuste, talvez nada lhe leve a palma); o nazismo, pelo contrário, não ocultou a sua natureza degeneradamente maligna: a da suposta e absurda existência de uma raça superior, doutras inferiores, e até de uma categoria que estava -- nas cabeças deformadas dos --, abaixo da humanidade e que havia que exterminar, não sem  antes ser sugada, metodicamente, pelo trabalho até à exaustão, com rigor e cultura germânicos.
    

3 comentários:

  1. Como relato referencial, como testemunho, é extremamente interessante. Dá-nos uma visão que o romance, por muito que se nutra da realidade, nos fornece sempre de forma diferente. Parece-me que a discussão se fixou mais nos factos históricos, na comparação com outras situações de extermínio (URSS, Jugoslávia, etc.)e menos na experiência concreta de sobrevivência e nas atitudes humanas relatadas(as más e as menos más). Talvez fosse esta a via mais fácil de seguir. De qualquer forma, a ser assim, não enjeito a minha quota-parte de responsabilidade.

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  2. Sim, é a mais imediata e óbvia, mas é difícil escapar-lhe. A generalidade das pessoas projecta nos livros as suas dúvidas e inquietações; mas, apesar de tudo, creio que houve equilíbrio.
    O que mais me fascinou, além do que é contado, foi a forma como foi contado, o estilo seco, o mais apropriado neste caso.

    Ab.

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  3. Encontrei (finalmente) o livro e estou a lê-lo. Há frases que arrepiam ou, simplesmente, me obrigam a parar de ler; pela simplicidade, pela secura da descrição, como se houvesse uma permanente dissociação / distanciamento entre quem escreve e quem é descrito.
    Paro a revolver o pensamento "do que somos capazes".

    Acho interessante (particularmente) a referência ao Germinal; Sauvarin (espero não estar a ser rasteirado pela memória...) foi, durante muitos anos, um personagem de referência, pela identificação pessoal, com ele... era o que eu faria se estivesse naquela mina, naquelas circunstâncias.

    Pergunto-me, agora, como, o que faria, se estivesse estado no lugar de Primo Levi!?

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