17 de agosto de 2024

LIRA MAIOR (2)

 

OS QUE SE AMAM

 

Os que se amam nem sempre estão juntos. Sabemos

que é assim. Os passos que dão seguem um caminho

ignorado para quem os surpreenda a noite

ou o límpido nevoeiro de um pressentimento

que neles existe. Às vezes, falamos acerca de Romeu

porque nos esquecemos de Julieta, mas sempre ambos existiram

nas suas sombras que eram afinal só uma. As mãos

ficaram estendidas e o ar tornou-se mais leve

para o respirarem dentro de uma flor. Não podia ser

de maneira diferente. Mas perguntamos agora se é o mesmo túmulo

que os deixa separados. O tempo passa e depois chega

o esquecimento. «Meu amor», e são estas as duas palavras

que foram pronunciadas. Qualquer nuvem sobre uma casa em ruínas

fica maior. É aí que Eva espera por Adão, Heloísa por Abelardo, Charlotte

por Werther. Elas entreabrem os seus olhos para dizer

«o que murmuraste?» Havemos de escutar estas palavras

tão simples como a água ao correr entre os dedos, único

anel que lhes foi dado para sempre. E a mesma pergunta

é a nós que se dirige, até se compreender que somos

o outro, alguém que aparece para trazer consigo

uma esperança possível, esta ternura que foi mantida

em segredo e também um pouco de ciúme: não passamos

nós tantas noites com Charlotte, Eva, Julieta ou Heloísa

como se fôssemos tocados por um sereno desgosto

ao despertar agora no jardim que há numa página

que se desfolha? À sua volta o amor deixou espalhadas

estas manchas de fecundidade, o leve

sémen que principia a descer e é capas de decifrar

o segredo de um encontro esperado há muito. Assim é o corpo

de todos aqueles que amam. A morte veste-os.

 

FERNANDO GUIMARÃES - Junto à Pedra (2018)


3 comentários:

  1. Isto é tão lucidamente bonito, Manuel Nunes. E triste. Como uma sombra de asas na lonjura de ser pássaro.

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  2. Gostei muito deste, escrito à pedra.

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