Barranco de Cegos (1961) conta o fim de um tempo, entre o Ultimato inglês (1890) e o pós-5 de Outubro de 1910, e revela-nos uma família de grandes lavradores ribatejanos, cujo chefe é uma personagem inesquecível: Diogo Relvas, homem excessivo, cruel e reaccionário, fiel a uma tradição agrária que vê na terra as virtudes ancestrais duma nação, e no desenvolvimento industrial a condenação da pátria, motivada pela cupidez e pela ambição de poder de uma elite cega -- cegos conduzindo cegos, uns e outros na iminência de caírem num barranco, de onde dificilmente se sairá. Relvas carrega consigo o peso dos antepassados, regendo-se por uma ética abstracta, inflexível quanto ao essencial -- a manutenção do poder: simbólico, através dos cerimoniais do mando, e de facto, pela posse efectiva do agro; inflexível no essencial, moderadamente maleável quanto a questões mais prosaicas. As restantes personagens, em especial os filhos, órfãos de mãe, débeis, volúveis -- um deles esmagado pelo peso excessivo do progenitor --, as duas filhas, Milai e Maria do Pilar, fortes e marcadas, complexas no lidar com o patriarca, dão profundidade ao romance. Outras personagens secundárias, em especial as populares, são também fundamentais; mas esta é uma história de senhores, homens senhores doutros homens.
No prefácio que escreveu em 1964, Mário Dionísio, que não era de elogio fácil e se afastara já do PCP, na sequência do Relatório Krushchov, não hesita em classificar o livro como "um dos grandes romances de toda a nossa história literária".
Barranco de Cegos é, com efeito, literatura da boa, da que conta, da que interessa, da que constrói identidade, da que dá substrato à comunidade de que emana -- e também da que experimenta, da que burila, da que arrisca. Para além de todas as classificações que cada vez fazem menos sentido, a não ser numa abordagem historiográfica, trata-se de neo-realismo, e do melhor -- isto é: não evidenciando a vulgata que simplifica e sectariza, é suficientemente amplo para ser subscrito por todos quanto comungam de preocupações afins, sem que com isso o autor traia (e se traia) o escopo ideológico que lhe subjaz. O final do romance, magistral, traz-nos uma atmosfera que dir-se-ia paralela à do realismo mágico, que o recém-falecido Gabriel García Márquez consagraria anos mais tarde.
Redol é, sempre foi -- mesmo no inaugural Gaibéus (1939) -- um romancista de raça, um criador de mundos, de atmosferas, de personagens de carne e osso. Barranco de Cegos evidencia-o de tal forma que -- para desgosto de alguns cadáveres -- se inscreve duradouramente no nosso cânone literário.
Em tempo: informou-me António Redol que Mário Dionísio saiu do PCP em 1951, antes, portanto, da divulgação do célebre Relatório (algo que eu cria ter lido na Autobiografia do próprio Dionísio, mas, pelos vistos fui atraiçoado pela minha memória -- o que, infelizmente, é frequente). Substituí também o adectivo "incipiente", relativo a Gaibéus, pelo neutro "inaugural", menos equívoco quanto ao meu ponto de vista.
No prefácio que escreveu em 1964, Mário Dionísio, que não era de elogio fácil e se afastara já do PCP, na sequência do Relatório Krushchov, não hesita em classificar o livro como "um dos grandes romances de toda a nossa história literária".
Barranco de Cegos é, com efeito, literatura da boa, da que conta, da que interessa, da que constrói identidade, da que dá substrato à comunidade de que emana -- e também da que experimenta, da que burila, da que arrisca. Para além de todas as classificações que cada vez fazem menos sentido, a não ser numa abordagem historiográfica, trata-se de neo-realismo, e do melhor -- isto é: não evidenciando a vulgata que simplifica e sectariza, é suficientemente amplo para ser subscrito por todos quanto comungam de preocupações afins, sem que com isso o autor traia (e se traia) o escopo ideológico que lhe subjaz. O final do romance, magistral, traz-nos uma atmosfera que dir-se-ia paralela à do realismo mágico, que o recém-falecido Gabriel García Márquez consagraria anos mais tarde.
Redol é, sempre foi -- mesmo no inaugural Gaibéus (1939) -- um romancista de raça, um criador de mundos, de atmosferas, de personagens de carne e osso. Barranco de Cegos evidencia-o de tal forma que -- para desgosto de alguns cadáveres -- se inscreve duradouramente no nosso cânone literário.
Em tempo: informou-me António Redol que Mário Dionísio saiu do PCP em 1951, antes, portanto, da divulgação do célebre Relatório (algo que eu cria ter lido na Autobiografia do próprio Dionísio, mas, pelos vistos fui atraiçoado pela minha memória -- o que, infelizmente, é frequente). Substituí também o adectivo "incipiente", relativo a Gaibéus, pelo neutro "inaugural", menos equívoco quanto ao meu ponto de vista.
O título deixa-me algo perplexo.
ResponderEliminarNão vejo cego nenhum no romance.
Os explorados e oprimidos não são cegos; os que os exploram é que querem privá-los de ver...
Os exploradores também não têm nada de zarolhos; olham à sua volta como linces, atentos a qualquer movimento que os possa fazer perigar, para logo agirem em defesa dos seus privilégios...
Onde estão os cegos?
Na verdade, não acho o título muito bem conseguido (que me desculpe o excelente Alves Redol!)
Caro amigo,
ResponderEliminarEra Diogo Relvas quem acusava de cegueira os seus (digamos assim, por facilidade de expressão:) "correligionários", uma vez que, na cupidez de que se troanavam presas, facilitando a industrialização do país e a sua modernização, e negligenciando a lavoura -- na qual, segundo o mesmo Relvas, assentava o que de melhjor e mais perene Portugal tinha -- abriam portas que não voltavam a fechar-se, levando à dissolução da sociedade estratificada e oredenada que era a sua.
PS -- perdão pelas gralhas...
ResponderEliminarCompreendo a sua leitura.
ResponderEliminarMas continuo a não perceber como possa isso dar o título ao livro... No fundo, isso era apenas a interpretação do Diogo...
Provavelmente, não estou a ver bem.