Browning a tiracolo, verificou o tabaco e as mortalhas, esqueceu-se do relógio pendurado num prego que também segurava um calendário e saiu porta fora. O céu começava a clarear. Ou talvez nem sequer tivesse começado a clarear. Por cima das sopas de café com leite, Celestino emborcara, sem esforço, dois tragos de bagaço. O primeiro, para a azia. O segundo, para os pensamentos cismáticos, que ele, como, aliás, todos os traços fisionómicos sugeriam, era homem dado a prolongadas melancolias.
Por volta das onze horas da manhã, nenhum vento de mudança fora ainda sentido por aqueles que viviam da cruel aritmética dos alqueires, dos cinchos, das safras, das luas, das maleitas, das malinas, das geadas. Nos campos, homens e mulas rasgavam a terra em irrepreensíveis geometrias, enquanto, na penumbra dos currais, embaladas por ladainhas que os próprios lábios iam tecendo, as mulheres atestavam as gamelas dos porcos, das cabras, dos filhos. E, se alguém tivesse o desplante de interromper os seus laboriosos afazeres para lhes comunicar que, naquele preciso momento, o Presidente do Conselho de Ministros de Portugal se encontrava encurralado num quartel de Lisboa, cercado por soldados que exigiam a sua rendição, o mais certo seria obter como resposta um olhar de absoluta indiferença.
É que naquela pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, voltada para sul sem consciência de que estava voltada para sul, a única exceção àquele total alheamento acerca dos destinos da pátria, como se a pátria fosse um lugar longínquo, era a casa do doutor Augusto Mendes, onde, numa espécie de gabinete de crise, se encontravam reunidas as suas mais ilustres personalidades: Adolfo, Bocalinda, Larau, padre Alberto, Fangaias e, claro está, o anfitrião, o doutor Augusto Mendes.
[...]
Excerto do primeiro capítulo de O Teu Rosto Será o Último, João Ricardo Pedro, Leia (BIS).
(Sessão de 7 de Maio de 2014)
idem :)
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