Uma carta que me surpreendeu pelo tom de humildade deste "escrevinhador" com obra feita, 1º sargento do exército, pensando eu que fosse oficial... Conheci Manuel Ferreira aí por 1966 ou 67 como frequentador do pavilhão Ribamar de Algés onde tomava café com a companheira Orlanda Amarílis, também contista da ficção cabo-verdiana. Moravam em Linda-a-Velha, era ali perto.Tenho dele este livro:
Edição da Plátano Editora, Colecção Poliedro, Junho de 1972.
Muito curioso, este livro de contos tem uma espécie de pórtico, como era usual nas obras de Ferreira de Castro. Aludindo ao triângulo de subsistência do cabo-verdiano, diz: «Milho, feijão, cabra. Mas de tempos a tempos a escassez das chuvas.Vai-se a cabra - e eis o equilíbrio destruído. Com milho e feijão (cachupa pobre) ainda o cabo-verdiano subsiste. Ciclicamente porém o drama da estiagem. O feijão some-se. Milho apenas, e pouco. Um luxo de ricos. A tragédia da fome. Fome oculta, fome crónica, fome epidémica, fome total. A boqueira, o beribéri, a caquexia, o inchaço, a pelagra larvando. A pelagra na sua destruição dos três dd: dermatose, diarreia, demência.»
Uma nota final: o pavilhão Ribamar de Algés é hoje um estabelecimento Burger King.
Que humildade, que ternura, que limpidez de alma, as desse escrevinhador, curiosamente meu co-munícipe, cuja existência eu desconhecia em absoluto.
ResponderEliminarO P.S., então, é simplesmente comovente. A adoração que ele tinha a FC...
Do Manuel Ferreira tenho «Hora di Bai», uma extraordinária novela, que bem merecia uma leitura no nosso clube, mas crio estar esgotada. E os três volumes de «No reino de Caliban», um serviço que ele prestou às poesias africanas de expressão portuguesa.
ResponderEliminar“Hora di Bai” li há muito tempo, não tenho uma ideia segura do livro. De “No Reino de Caliban” tenho apenas conhecimento. Caliban, tal como Próspero, são personagens de Shakespeare (de “A Tempestade”). Caliban tem sido associado ao colonizado e Próspero ao colonizador. Caliban apropriou-se da língua de Próspero ou foi este que lha impôs para o dominar? A matéria não é pacífica, mas não aprofundei. Rui Knopfli tem “A Ilha de Próspero”, e quando nos princípios de 70 passei por Lourenço Marques comprei os “Cadernos de Caliban” que então se editavam lá. Perdi-os quase todos, só fiquei com um, por sinal com poemas do Craveirinha.
ResponderEliminarQue interessante... O trabalho do Manuel Ferreira é deveras importante nessa antologia, embora tenha tido o eco de que o título não terá agradado a todos por lá, provavelmente por ser uma personagem cheia de deformidades, embora, se bem me lembro, personagem positiva...
Eliminar«Hora di Bai» é extraordinário; a grande fome em cabo Verde nos 40, se não estou em erro, ecos também de Jorge Amado
Diz o Manuel que pensava que Manuel Ferreira era oficial e não sargento. Pode ser verdade. Explicando: a carta (pg. 174-175) é datada de 11-6-1955 e nela o autor se declara 1º Sargento de Infantaria. O encontro de Manuel Nunes com Manuel Ferreira foi por 66-67. Pode, entretanto, ter sido promovido e chegado a oficial, sendo, como tudo indica que fosse, um profissional de mérito...
ResponderEliminarOutra coisa:
Para quem andou na tropa, como eu, parece um pouco estranho imaginar um sargento em plena actividade profissional (o sargento é o homem das coisas práticas do dia-a-dia, das escalas de serviço, da limpeza, do rancho, da secretaria) dedicar-se, com tal grau de rigor e profundidade, ao estudo da literatura e produzir obra de tanto mérito científico e estético como, pelos vistos, produziu.
Sim, Fernando, pensei nisso. Ele podia já ser oficial quando o conheci. Um dado que me esqueci de referir e que tem a ver com o seu interesse pelas literaturas africanas: Manuel Ferreira fez uma comissão de serviço em Cabo Verde, entre 1941 e 47, foi lá que conheceu a mulher com quem casou, também escritora. Quanto à compatibilização da função de militar com a de escritor, pois, é verdade... mas ele é capaz de, entretanto, ter passado à reserva. Consta da sua biografia que tirou um curso superior e que chegou a professor da Faculdade de Letras de Lisboa.
ResponderEliminarObrigado, Manuel, pela explicação.
ResponderEliminarO meu pai também andou por Cabo Verde por essa época. Quem sabe se não se conheceram...