18 de fevereiro de 2024

101 poemas portugueses - #22.


CANTIGA PARA OS TRABALHADORES DOS CAMPOS


Sou cavador, cavo a terra

Donde nasce a flor e o grão.

Dou aos outros a fartura

E em casa não tenho pão.

 

Hoje planto árvor's e vinha,

Lavro a terra, rego a horta,

E amanhã, em sendo velho,

Pedirei de porta em porta.

 

O sol a todos aquece,

Não nega a luz a ninguém,

Ama os bons e ama os maus

E assim foi Jesus também.

 

A árvore, quanto mais fruto,

Mais baixa os ramos p'ra o chão.

O homem, quanto mais rico,

Mais ergue a sua ambição.

 

A vida do pobre é isto:

-- Trabalhar enquanto moço,

E em velho andar às esmolas

Como o cão que busca um osso.

 

Morre um rico, dobram sinos!

Morre um pobre, não há dobres!

Que Deus é esse dos padres

Que não faz caso dos pobres?

 

Se pão não tenho, e os meus filhos

Me pedem pão a chorar,

Dou-lhes beijos, coitadinhos!

Que mais não lhes posso dar...

 

Sinto no mundo um rumor

Que anuncia um dia novo,

Andam profetas na terra

Abrindo os braços ao povo!

 

O sol nasceu cor de sangue

E a lua da mesma cor.

Gritam as bocas: Mais pão!

E os corações: Mais amor!

 

Bernardo de Passos, (São Brás de Alportel, 1876-1930) 

Refúgio (póst., 1938) / Líricas Portuguesas. 2.ª Série

 (edição de Cabral do Nascimento)

4 comentários:

  1. Singelo mas acutilante...
    Lá fui bater à porta da Wikipédia, que, solicitamente me informou tratar-se de um
    ... poeta de forte pendor lírico, pessoa de temperamento simples e modesto; vida curta...
    (Vê-se quase tudo no poema...)

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  2. O facto de discordar do conteúdo de uma quadra, não retira a beleza à singeleza e ao sentimento que se vê brotar.
    Nunca tinha ouvido falar do autor.

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    1. É um poeta desperto para o meio envolvente e para as pessoas que o habitam, talvez herdeiro de João de Deus.

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