23 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #49


RECREIO


Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...


Alberto de Serpa (Porto, 1906-1992), 

in José Régio, Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler (1956)

16 de setembro de 2024

13 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #48


NASCIMENTO


A minha égua lazã
Teve uma linda cria,
Nascida antemanhã,
Mal, ao de leve, despontava o dia...

Cá fora, 
Na placidez da hora enregelada e fria,
Silenciosa e deserta
A terra dormitava.
E pela porta aberta
Da velha estrebaria,
Um hálito de vida se escapava
E, como fumo, manso se perdia.

Sombras de uma lanterna fraca
Dançavam, ágeis, na parede escura.
E brandamente,
Naquela luz opaca,
Tudo envolvia uma doçura quente.

Sobre a palha doirada,
Enquanto o sol aos poucos 
Ia surgindo à porta,
A mãe jazia, agora descansada.
E a dois passos, imóvel e estirada,
A cria parecia ter nascido
Pra logo ficar morta,
O corpo já doído
Do trabalho da vida começada.

Venho assomar-me à porta,
A contemplar o meu amigo dia.
E o campo, todo branco de geada,
Brilha até onde a minha vista alcança...
E, infantilidade,
Ou despropositada poesia,
O nascimento, a hora, a luz do dia,
Dão-me um fecundo amanhecer de esperança.


Francisco Bugalho (Porto, 1905 - Castelo de Vide, 1949)

presença #51, Coimbra, Março de 1938,


6 de setembro de 2024

101 poemas portugueses - #47


OCEÂNIAS


Ondas do mar me deitaram
sobre o calor das areias
que ao meu corpo se moldaram
pra aquecer as minhas veias.

E aquele corpo de escrava
dando-me força a vencia
pelo gozo que me dava
para o gozo que sofria.

A noite vinha a descer
e subia a maré-cheia...
Eu já tinha o meu poder:
fugi à praia, deixei-a.

Foi assim que regressei
das conquistas do mar bravo,
e ergui palácios de rei
sobre refúgios de escravo.


Branquinho da Fonseca (Mortágua, 1905 - Malveira da Serra,  Cascais,1974),

in presença #7, Coimbra, 8-XI-1927