29 de março de 2024

101 POEMAS PORTUGUESES - #30


CANÇÃO DO NU

Lindo
Mármore precioso que na alcova
Surpreendi dormindo!
E lindo
À luz dum fósforo, acendido a medo,
Despertou sorrindo.
E, lindo,
Dos olhos as meninas me saltaram
Para o nu que se estava descobrindo.

Linda!
Ficou-se ao desgasalho adormecida,
Ai vida,
Como ainda não vi coisa tão linda.

Linda,
Braços abertos em desnudo amplexo,
Seu corpo era uma púbere mendiga,
E ele é que estava pedindo,
Lindo,
O meu sexo.


Afonso Duarte (Ereira, Montemor-o-Velho, 1884 - Coimbra, 1958),
Rapsódia do Sol-Nado seguido de Ritual do Amor (1916)

28 de março de 2024

"FORMULAÇÕES POÉTICAS", apócrifo da série em curso neste blogue


«(…) toda a poesia consiste fundamentalmente no desgosto que o homem tem sempre pelo que ainda é e nos seus braços estendidos para o que quer ser; consiste fundamentalmente na tal reconstrução sobre si próprio, no seu desejo eterno de ser mais, que é como quem diz: melhor.»

– Dissertação de licenciatura de MÁRIO DIONÍSIO, “Introdução à leitura da ‘Ode Marítima’", apresentada em 1938 à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 

O candidato foi reprovado no exame.  


26 de março de 2024

101 poemas portugueses - #29


VIDA VITORIOSA


Foi uma vida vitoriosa, é certo,

A vida que vivi nesta jornada,

-- Não da vitória que se vê de perto,

E que se alcança, apenas desejada.

 

Não do triunfo que sorri, incerto,

E logo é fumo, e é pó, e é cinza, e é nada,

-- Mas doutra glória que ao meu peito aperto,

E só eu vejo, pura e recatada.

 

Porque em silêncio conquistei, lutando,

-- Quantas vezes perdido e miserando,

Quantas vezes vencendo a própria dor --

 

Esta alegria de passar na vida

Sendo uma força, que jamais duvida,

E uma voz clara, como a Voz do Amor!


João de Barros (Figueira da Foz, 1881 - Lisboa, 1960),

Vida Vitoriosa (1919)

24 de março de 2024

o início de O TEMPLO DOURADO

«Desde a mais tenra infância, o meu pai falou-me do Templo Dourado.» 
Yukio Mishima, O Templo Dourado [1956], trad. Paulo Faria, Porto, Livros do Brasil, 2020, p. 11.

23 de março de 2024

101 poemas portugueses - #28


A DOR DAS PEDRAS 


Ó pedras a sofrer, em ânsias, nas calçadas,
Ninguém vos sabe amar, ninguém de vós tem dó,
Ninguém sabe entender, ó pedras desgraçadas,
Que há lágrimas também dentro do vosso pó!

Passam, por sobre vós, tanta dor e alegria,
Olhos em que há prazer, olhos em que há tormento,
E ninguém vos consola e queima-vos o dia
E, quase sempre a rir, insulta-vos o vento!

E ninguém sabe ver que pode o infinito
Duma dor existir numa pedra do chão;
Que pode acontecer que um palmo de granito
Sofra, por vezes, mais que um grande coração.

E vós continuais sofrendo a vossa cruz,
E eu vejo-vos lançar um clarão para os Céus,
Como um grande protesto: ó pedras, essa luz
O que é que vai dizer ao ouvido de Deus?

Eu sei que vós falais a Deus dessa maneira:
Vossa palavra é luz, só Deus pode entendê-la:
Há dentro em vós, talvez, uma via-láctea inteira,
Porque, em sentindo dor, sai de vós uma estrela...

Ó pedras, esperai, que talvez um vulcão
Vos lance para o Céu, num abalo violento,
E lá pode falar o vosso coração
E alguém compreender o vosso sofrimento!

João Lúcio (Olhão, 1880-1918),
Descendo (1901) / 
Cabral do Nascimento, Líricas Portuguesas - 2ª. Série

21 de março de 2024

 POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL, XXIII


A VIDA

A vida é o dia de hoje,

a vida é ai que mal soa,

a vida é sombra que foge, 

a vida é nuvem que voa,

a vida é sonho tão leve

que se desfaz como a neve

e como o fumo se esvai:

a vida dura um momento,

mais leve que o pensamento,

a vida leva-a o vento,

a vida é folha que cai.


A vida é flor na corrente,

a vida é sopro suave,

a vida é estrela cadente,

voa mais leve que a ave:

nuvem que o vento nos ares,

onda que o vento nos mares

uma após outra lançou,

a vida - pena caída

 da asa de ave ferida - 

de vale em vale impelida,

a vida o vento a levou.


JOÃO DE DEUS

20 de março de 2024

#25 poemas passados para português - #19.


COM O TEMPO A SABEDORIA


Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;

Ao longo dos enganadores dias da mocidade,

Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;

Agora posso murchar no coração da verdade.

original aqui


W. B. Yeats (Dublin, 1865 - Menton, 1939)

versão de José Agostinho Baptista (Funchal, 1948)

18 de março de 2024

101 poemas portugueses - #27


Porque as mães sempre amaram tudo quanto
Chora de baixo, ou pede algum perdão,
Quer seja a flor, que sofre em qualquer canto,
Seja a raiz, às cegas pelo chão.

E mortas -- não lhes morre ao pé um pranto,
Que elas não sequem com a sua mão,
-- Mesmo quietinhas, inda afagam tanto,
Mesmo geladas, que calor não dão!

Basta que à tarde, pequenino e estreito,
Um fio d'água passe por seu peito,
Logo julgam, de novo, os peitos cheios;

De modo que não há por todo o solo,
Miséria, que não durma no seu colo,
Desgraça, que não mame no seu seio!

Nunes Claro (Lisboa, 1878 - Sintra, 1949)
A Cinza das Horas (1928)

16 de março de 2024

101 poemas portugueses - #26


RELÍQUIA


Era de minha mãe: é um pobre chale
Que tem p'ra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
Da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
Deixo os meus dedos p'ra senti-la ainda;
E Ela vem, é ela que me abraça,
Fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe, mais perto, mais pertinho,
Que eu sinto quando toco o velho chale
Que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
Sinto ao tocá-lo como alguém que embale
E beije a minha sede de amor puro.


António Patrício (Porto, 1878 - Macau, 1930),
in Cabral do Nascimento, Líricas Portuguesas - 2.ª Série

13 de março de 2024

25 poemas passados para português - #18


OS ARAUTOS NEGROS


Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!

Pancadas como do ódio de Deus; como se sob elas
a ressaca de todo o sofrimento
estagnasse na alma... Eu sei lá!
 
Poucas; mas acontecem... Abrem leivas escuras
no rosto mais duro e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de átilas selvagens;
ou os arautos negros que nos envia a Morte.
 
São as profundas quedas dos Cristos da nossa alma,
de uma fé adorável que o Destino blasfema.
Tais pancadas sangrentas são as crepitações
de um pão que na porta do forno se nos queima.
 
E o homem... Pobre... Pobre! Volta os olhos, como
quando sobre o seu ombro uma palmada o vem chamar;
volta seus olhos loucos, e todo o já vivido
como um charco de culpa estagna em seu olhar.
 
Há pancadas na vida tão fortes... Eu sei lá!


César Vallejo (Santiago de Chuco, Peru, 1892 - Paris, 1938),
Antologia Poética, versão de José Bento.

10 de março de 2024

101 poemas portugueses - #25


ROSAS SEM ESPINHOS


Esta rosinha de Assis,
sem espinhos, que eu de lá trouxe,
murcha, luminosa e doce,
no seu leve aroma diz:
-- Uma vez tentado foi

o Santo pla carne inquieta;
eis que o desejo lhe dói
numa agonia secreta.


E com a sede dos beijos
e dos ardentes carinhos,
arroja o corpo em desejos
às rosas cheias de espinhos!


Mas nós, quando então o temos
no abraço deste rosal,
os espinhos recolhemos
para lhe não fazer mal.


Afonso Lopes Vieira (Leiria, 1878 - Lisboa, 1946)
Um Ramos de Rosas - Colhidas por José da Cruz Santos na Poesia Portuguesa e Estrangeira

7 de março de 2024

25 poemas passados para português - #17.


MULHER


Não saíste, Mulher, inteiramente,

Das mãos de Deus! A sede e a formosura

Dos homens completam a figura

Divina que tu és, -- eternamente.

 

O amor do homem, na ansiedade ardente,

Vestiu de glória a mocidade pura

Da tua vida. Para ti procura

Um canto o Poeta, infatigàvelmente.

 

Sem descanso, o pintor, numa ansiedade,

Às tuas formas dá actividade,

Para adornar teu corpo alvo e risonho.

 

Jardins, o mar e a terra abrem o seio,

Dão-te oiro, flores, pérolas, enleio...

 

-- És metade Mulher, metade Sonho!

 

Rabindranath Tagore, (Jorasanko Takurban, Calcutá, 1861-1941)

 Poesias de Tagore (O Músico e o Poeta)

versão de Augusto Casimiro (São Gonçalo, Amarante, 1889 - Lisboa, 1967)

6 de março de 2024

o início de CINCO DIAS, CINCO NOITES

 

«Com 19 anos incompletos, André viu-se forçado a emigrar.»

Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites [1975], Lisboa, Editorial «Avante!», 1994, p. 9.

4 de março de 2024

15 formulações poéticas - #14. José Tolentino Mendonça

 «[...] creio que é o silêncio que escreve o poema. As palavras estão lá para o testemunhar. Porque o poema não é a evidência, mas a interrogação, a sugestão, a lacuna, a fenda, a porta entreaberta, a possibilidade de viagem para cá e para lá dele.»

3 de março de 2024

101 poemas portugueses - #24.


CANÇÃO DUMA SOMBRA 


Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha, para ouvir a voz das cousas,
                    Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol que eu comungo de joelhos,
                     Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espectros à vida e se inflitrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
                    Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse o vento, que embalou
Meu coração e as nuvens, nos seus braços,
                    Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
                    Eu não era o que sou.


Teixeira de Pascoais (Amarante, 1877 - Gatão, 1952),

As Sombras (1907) / Antologia Poética

(ed. por Ilídio Sardoeira)