Meus amigos do Clube de Leitura
Tenho que admitir, que nestes tempos de pandemia as minhas
leituras têm andado bastante....direccionadas!
Mas isso pode ter uma explicação, como me escrevia o meu irmão há uns
dias já do seu reduto em autoisolamento. E porque é de cartas que tratamos
agora, passo a transcrever: “ Agora que virámos todos filósofos e procuramos o
sentido da vida, versão Monty Python, não há como seguir os que já pensaram a
coisa. «Sobre o futuro todos se enganam. O homem não pode estar seguro que do
momento presente. Mas será isto verdade? Pode verdadeiramente conhecer o
presente? Terá a capacidade de julgar? De certeza que não. Como é que aquele
que não pode conhecer o futuro, poderia conhecer o sentido do presente? Se não
sabemos a que futuro o presente nos conduz, como podemos dizer que este
presente é bom ou mau, merecendo a nossa adesão, a nossa desconfiança ou o
nosso ódio?» Milan Kundera”
Sim, tenho andado à procura do sentido da vida e a reler
muito devagarinho quem já pensou as coisas .“ (...) nesse momento, o ruir da
sua coragem, da sua vontade e da sua paciência era tão brusco que lhes parecia
que não poderiam jamais sair desse precipício. Então sujeitaram-se a não pensar
no termo da sua clausura, a não voltar o olhar para o futuro e a conservar
sempre os olhos baixos. Mas,
naturalmente, esta prudência, esta maneira de enganar a dor, de bater em
retirada para recusar o combate, eram mal recompensadas. Ao mesmo tempo que
evitavam este abatimento que não queriam por nenhum preço, privavam-se com
efeito, desses momentos bastantes frequentes em que podiam esquecer a peste nas
imagens da sua futura reunião. E, assim, encalhados a meia distância entre
estes abismos e estes cumes, mais flutuavam do que viviam, abandonados a dias
sem sentido e a recordações estéreis, sombras errantes que só poderiam ter
ganho força aceitando criar raízes na terra da sua dor.
Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os
prisioneiros e de todos os exilados que vivem com uma memória que para nada
lhes serve. Este próprio passado em que eles reflectiam sem cessar tinha apenas
o gosto do arrependimento (...) Impacientes do presente, inimigos do passado e
privados do futuro, parecíamo-nos assim bastante com aqueles que a justiça ou o
ódio humano fazem viver atrás das grades. Para terminar, o único meio de
escapar a estas férias insuportáveis era, pela imaginação, fazer andar de novo
os comboios e encher as horas com o tinir repetido de uma campainha, contudo,
obstinadamente silenciosa” A. Camus, A
Peste, Livros do Brasil, 2016, pp.69-70
Agora, andando eu tão pensativamente atarefada com questões
filosóficas, tinha para ler as 100 Cartas a Ferreira de Castro que tão bem o
Ricardo António Alves, seleccionou, comentou, anotou e, melhor ainda, nos
ofereceu!
Ao folhear, tropecei
numa e fiquei-me logo por ali. “Muito obrigado pela sua carta e pelos
seus livros (...), os livros vieram-me lembrar aquele período da minha vida em
que há muito de descoberta, de revelação e ao mesmo tempo de mistério (...)
Nessa altura eu tinha uma sede de conhecimento enorme, e lia tudo, com uma
pressa incrível. (Só mais tarde aprendi que um livro se deve ler devagar, com
calma, para conseguirmos tocar, quando a inteligência e a sensibilidade o
permitam, o mundo que o autor nos oferece). Durante anos li muitos livros,
esqueci outros e reli alguns. Tive prazer em encontrar de novo o Pavel, a Ana
Karenine, o Manuel [da] Bouça e o Juvenal, desta vez com mais compreensão da
minha parte e já na companhia de Jean Christophe, de João, de Sérgio, Jim,
Robert Jordane até mesmo de Lewis Alison.
Durante esses anos aprendi também que, apesar da desgraça
comum, nem todos os homens tinham boa-vontade, dignidade e compreensão. E mais
– que grande parte dos artistas tinham em si uma secura, uma desumanidade e um
desenraizamento tal, que fariam estremecer as pedras, se os seus dedos as
tocassem.
Aqui tem, Ferreira de Castro, um dos motivos da minha
admiração por si. Sei que v. lutou sempre por uma dignidade humana e para a
construção dum mundo melhor. Como intelectual v. esteve sempre ao lado dos que
queriam gritar e o seu grito não passava da garganta. Por isso os seus homens
da Selva, dos Emigrantes, da Terra Fria, são vivos, são autênticos. Por isso
nós precisamos de homens como V.” Carta de Eugénio de Andrade, Castelo Viegas,
Abril 46
Imaginando que estou ao pé de vós na nossa tertúlia mensal,
pergunto-vos: quem seriam essa "grande parte dos artistas" que E. de A., refere? E a mim, pergunto-me: Se eventualmente os li, será que com esse conhecimento os releria com um
sentimento diferente? (estou a lembrar-me do O. Pamuk, n´O Romancista Ingénuo e
o Sentimental...)
Ricardo, confirma-se que o personagem Lewis Alison, poderia
ser de um livro de Charles Langbridge
Morgan (1894-1958)? Em A Fonte,
publicado em 1932, Lewis A. é um oficial inglês que está preso num castelo
holandês durante a Primeira Guerra Mundial, para quem a prisão significa, de algum
modo, a liberdade de se poder dedicar somente à leitura, meditação e a um livro
que ele próprio está escrevendo. Charles
Morgan, foi ele próprio oficial subalterno na Divisão Naval do Churchill,
enviada para a defesa de Antuérpia e esteve prisioneiro na Holanda.
Um abraço saudoso,
Sara Fonseca
Ferreira