23 de novembro de 2022

TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

 

… Alegre pretexto para conhecer Afonso Henriques de Lima Barreto e uma obra extraordinária.

O livro beliscou-me e fez-me cócegas: surpreendeu-me; não conhecia o autor, o título não entusiasmava e depois...
A ironia cínica, cirúrgica, que se agacha debaixo de frases de uma inocência, que parece irrelevante, é admirável. Tudo com uma linguagem de quem está a falar por falar. Que nítida definição dos personagens, sem nos enfastiar com pormenores irrelevantes! Tudo na conta certa.
E a história que suporta o romance, que o poderia limitar no tempo e no espaço, replica-se na atualidade, dando-lhe um valor acrescido.
A sessão tinha-me já revelado uma situação menos comum: nenhum dos confrades se tinha desiludido com a leitura, o que, naturalmente, nem sempre acontece; mesmo os que, como eu, iam a meio da peregrinação. Concordo com a unanimidade da «votação».
E depois, Policarpo, um sonhador, mas que eu apreciei sobremaneira, pelos ideais que o alimentavam e conduziam, mesmo se, em termos práticos, as coisas não harmonizassem com os sonhos; mas seria melhor um mundo de Policarpos ou de abantesmas execráveis que partilhavam o mundo com ele? Ficou o mundo melhor com a prisão de Policarpo e a vitória dos pragmáticos?
Uma vénia ainda ao Ricardo Coração dos Outros e à afilhada que também encontramos, com alguma raridade, na sociedade hodierna.
Livro / autor diferente do habitual: inteligente, com uma visão superior das coisas... parecendo humildemente deambular entre os alarves gananciosos, poltrões, preguiçosos, oportunistas, ignorantes que vão desfilando na trama.
Já recomendei a amigos; recomendo-o a si.
A imagem de apresentação é extraída do filme baseado na obra, que descobri, e está à disposição de quem queira, embora eu tenha sempre receio de ver um trabalho cinematográfico inspirado num bom livro, pelo risco de desiludir.

15 de novembro de 2022

o início de TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

«Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por major Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde.» Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma [1915], Lisboa, Penguin Random House, 2021, p. 9.

27 de outubro de 2022

I ENCONTROS CASTRIANOS DE SINTRA - Museu Ferreira de Castro 12 de Novembro de 2022

 

Programa

10 h.: Apresentação dos Encontros

10,15h. Vítor Viçoso, «A Lã e a Neve e o Imaginário Neo-Realista: convergências e divergências»

11,00 h. Manuel Matos Nunes: «Tiago, o “Estica”, em A Selva, de Ferreira de Castro»

11,45 h.:  Fernando Ramos Machado, «Ferreira de Castro e os Grão-Mestres de Malta»

12,30 h: Debate

 

14,15 Annabela Rita, «Ferreira de Castro e a globalização»

15h. Ana Cristina Carvalho, «Rigores de Inverno em romances Castrianos: Cenário, personagem e mensagem»

15,45h. Clara Campanilho Barradas: «O teatro de Ferreira de Castro»

16, 30h Carlos Jorge F. Jorge, «Traços do destino e projeções da natureza humana nas representações da água em Ferreira de Castro»

17,15h : Debate

Entrada livre, sujeita a inscrição prévia

21 de outubro de 2022

"Anarquismo, Insubmissão, Inconformismo"


Estudos sobre Raul Brandão, A Batalha  e Raul Brandão, Campos Lima, Manuel Ribeiro, Neno Vasco, Ângelo Jorge, Jaime de Magalhães Lima, António Gonçalves Correia, Jaime Cortesão e Eça de Queirós, Pinto Quartim, Assis Esperança, Ferreira de Castro, Jorge Teixeira, Mário Domingues, José Régio, João Pedro de Andrade, Roberto Nobre, Alves Redol e os anarquista e anarco-sindicalistas, revista Pensamento
Apresentação por António Baião, Museu Ferreira de Castro, 22 de Outubro de 2022, 15 horas

 

10 de outubro de 2022

o início de O FALCÃO DE MALTA

«O rosto de Samuel Spade era longo e ossudo e o seu queixo formava um pronunciado V, sob o V mais suave da boca.»

Dashiell Hammett, O Falcão de Malta [1930], trad. Baptista de Carvalho, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 7. 

1 de setembro de 2022

o início de NIKETCHE -- UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA

 

 «Um estrondo ouve-se do lado de lá.»

Paulina Chiziane, Niketche -- Uma História de Poligamia (2002), 7.ª ed.,  Alfragide, Editorial Caminho, 2021 p. 9.

1 de julho de 2022

o início de DAVAM GRANDES PASSEIOS AOS DOMINGOS

 


«O comboio parara finalmente na estação de Portalegre.» José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941), Porto e Lisboa, Brevíssima Portuguesa #6 [1995], p.7.

15 de junho de 2022

COLOMBO EM VALE DO PARAÍSO

SALVADOR DALI, A descoberta da América por Cristóvão Colombo (1959), óleo sobre tela, dim. 410x284cm., Salvador Dali Museum, St. Petersburg, Florida, USA

Nas cartas de J. A. Marcos Serra e Carlos Paiva Neves compiladas em Entrementes encontram-se várias referências a Cristóvão Colombo, aliás Cristóvão Colon, antropónimo que faz jus à tese da nacionalidade portuguesa do navegador. Fosse ele português, genovês ou catalão, a verdade é que se equivocou na sua ideia de chegar à Índia por Ocidente, possibilidade que em Portugal parecia ser aceite como não válida.

Há uns anos visitei em Vale do Paraíso (Azambuja) o “Centro de Interpretação Colombo”. Foi naquele lugar que o navegador se reuniu com D. João II ao regressar, em 1493, da sua primeira viagem à América. Há lá uma placa assinalando o local do encontro.

 Trata-se de mais um mistério do descobridor das Índias Ocidentais. Como conta Rui de Pina (Crónica de D. João II), o rei estanciava em Vale do Paraíso, por causa da peste que grassava em Lisboa, quando foi informado da entrada de Colombo no Tejo. Porque não rumou a nau do capitão a um porto espanhol? É certo que houve uma tempestade que dispersou a frota, mas isso talvez não explique tudo.

Chamado à presença do Príncipe Perfeito, ter-lhe-á dado informações que só depois daria aos Reis Católicos? De acordo com o cronista, Colombo «era de sua condição um pouco levantando» e «no recontamento de suas cousas excedia sempre os termos da verdade», pelo que o encontro com D. João II dispunha de todos os ingredientes para correr mal. Tal não sucedeu - garante Rui de Pina - por o rei ser «muito temente a Deus», triunfando a ponderação e acabando «por lhe fazer honra e muita mercê».   

Como ainda não li todo o livro, não sei se este episódio é referido nalguma carta. O colega José Serra logo nos dirá. E talvez nos possa dar a sua interpretação de mais este “mistério” associado ao misterioso Colombo, ou Colon. 


8 de junho de 2022

ENTREMENTES - CONVERSAS (DES)CONFINADAS (2)

Caro José,

Afinal ainda consigo escrever-te antes dos feriados. Sobre espiritismo, fenómenos mediúnicos, etc., transcrevo parte de uma entrada do diário de José Régio (estudava naquele tempo em Coimbra, tinha 23 anos):

«Coimbra, 4 de Novembro de 1924

 – Tenho passado noites horríveis.

Assisti (e colaborei) a algumas sessões de espiritismo, entre rapazes. O que a eles passou quase indiferente perturbou-me a mim em excesso. Invocámos numa delas o espírito de António Nobre, que disse querer dirigir-se a mim. Transcrevo algumas perguntas:


Eu – Tens alguma coisa a dizer-me?


– Só.


  Que queres tu dizer? referes-te a mim, ou a ti?

            – A ti.

– Sabes porque gosto tanto de ti?

– Só.

– Queres dizer que sou como tu?

– Sim.

(…)

– Qual é a poesia do teu livro que preferes?

– Todas.

– Qual é o poeta do teu tempo que mais amaste?

– Eu.

– Quem mora agora na Torre de Anto?

– Eu

etc.


Como se vê, são respostas dignas do meu Príncipe. Este interrogatório chocou-me até às lágrimas. Deixei de assistir a estas sessões, porque elas me perturbavam extraordinariamente:  Tive pesadelos e terrores nocturnos (…)»*

Pela minha parte, imaginava um espírito de António Nobre loquaz, no género de “Lusitânia no Bairro Latino” e “Males de Anto”, mas afinal não...

Votos de bom fim-de-semana e até à próxima.

M.

 * JOSÉ RÉGIO, Páginas do Diário Íntimo, Obra Completa, Lisboa, IN-CM, 2004.

 

5 de junho de 2022

ENTREMENTES - CONVERSAS (DES)CONFINADAS (1)


Caro José,

Chegado à página 82 do teu livro, epístola de 31 de Julho de 2020 em que se fala de hipnotismo, de Cristóvão Colombo, da leitura do Alcorão e de Manuel Ribeiro, esse escritor d´A Catedral que recentemente me foi apresentado no colóquio do Museu Ferreira de Castro, tenho condições para escrever a presente carta.

Em primeiro lugar para enviar parabéns pelo trabalho epistolar em confinamento, eu que não soube o que isso era porque andei sempre na rua – embora com responsabilidade –, sem ligar às ponderosas prescrições então lançadas sobre o pessoal, os velhinhos fechados em casa, à força, pela devoção filial, os homens novos receosos de que o vírus lhes entrasse pelas narinas ou pelas comissuras da boca, as criancinhas  aceitando as explicações dos pais de que não se podia dar beijinhos por causa do bicho que andava à solta. Ia com uma amiga  para as margens do Tejo ou para os montes e vales do nosso concelho de Vila Franca de Xira e depois de jantar andava sozinho pelas ruas do bairro (passeio higiénico) enquanto nas janelas e varandas os cómicos do costume batiam palmas frenéticas pelas dez da noite.

Quando estava em casa, aproveitava o tempo lendo e relendo a Montanha Mágica, de Thomas Mann, também Humilhados e Ofendidos e Crime e Castigo, de Dostoievski. Ainda tentei Ulisses, de Joyce, mas a coisa não resultou. À tua semelhança, embora à minha maneira, seguia a máxima de Blaise Pascal: “Faire le bon usage des maladies”. Apesar de não estar doente, havia, omnipresente, uma doença a tentar dar-nos cabo do juízo.

Agora, vejo as tuas considerações e do teu correspondente sobre a alma. Considerações atentas, bem elaboradas, parece-me (independentemente de estar ou não estar de acordo com elas), até com uma bibliografia sobre a matéria (epístola de 22 de Abril de 2020), devendo dizer, pobre de mim, que nunca passei do Fédon, de Platão, da Quarta Parte do Discurso do Método, de Descartes, do Tratado das Paixões da Alma, do mesmo autor, de Montaigne, que sem o dizer também falava da alma, e dos rudimentos da psicanálise de Freud. Posso estar a dizer uma grande barbaridade, mas acho que era da alma que o homem tratava lá no seu lendário consultório de Viena.  

Assim, acredito na alma, mas não na sua imortalidade, esta é a posição atingida pelo meu fraco saber. Disse Platão no diálogo citado qualquer coisa como ser a alma prisioneira do corpo. A minha primeira dúvida é como é possível a vileza do corpo (sensível e visível) aprisionar o espírito (não sensível e invisível)? Disse também que com a morte do corpo a alma ficava finalmente livre, indo para o Hades, julgo em definitivo, na companhia dos deuses e outros homens bons (caso procedesse de uma vida justa, evidentemente) e não como por vezes se diz por aí à espera de entrar em novo cárcere.

O discípulo de Sócrates, ouso pensar, poderá ter errado e ser responsável por muitos erros da filosofia medieval e moderna, porque é mais natural aceitar que a alma morra com o corpo, ou seja, que o prisioneiro sucumba à derrocada do seu ergástulo. Mas que sei eu? Tudo isto é matéria rebatível, de impossível certeza, e aqui devo avançar com a célebre asserção, mais platónica do que socrática, «só sei que nada sei!». Ponto final, parágrafo.

Estou a apreciar a leitura. Havia um movimento maoísta que tinha como divisa «ousar lutar, ousar vencer». Parece-me mais justo dizer «ousar pensar, ousar escrever». Foi o que haveis feito.

Vou continuar a ler quando me desembaraçar de uns trabalhos em que ando metido. Agora com os feriados, as festas e a sardinha assada, quiçá a praia, pode ser que me atrase um pouco… Mas um dia destes volto a escrever.

Até lá, caro amigo, paz e saúde!

M.


2 de junho de 2022

OLHEM QUE CINCO!

Fotografia tirada em 1884 no Palácio de Cristal. E que dizer daquele quase juvenil da direita, sem as barbas prodigiosas com que teria assustado todos os espectros da Casa de Bragança se eles lhe tivessem aparecido como apareceram ao anafado Rei? Estava então à beira de publicar em livro o seu poema "O Melro", lição da Natureza a um abade ocioso:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E arremessando a bíblia, o velho abade
Murmurou:
                    «Há mais fé e  há mais verdade ,
            Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa bíblia antiga... Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!...»

(Guerra Junqueiro, A Velhice do Padre Eterno)

16 de maio de 2022

ENTREMENTES CONVERSAS (DES)CONFINADAS

É um livro, em forma epistolar, que nasceu com o aparecimento da pandemia, e de uma mensagem que o confrade J. A. Marcos Serra endereçou ao seu mundo de familiares, amigos, colegas atuais e antigos, enfim, a todos os que constituem a cadeia humana em que está inserido de modo real.

Uma das respostas, a de Carlos Paiva Neves, exigia uma explicação, que foi dada; e esta gerou mais algumas questões, que levaram a outras, que mereceram réplica, e acabaram num livro de 270 páginas sobre questionamentos filosóficos, religiosos, teorias de reencarnação, espiritualidade e espiritismo (por antítese ao materialismo e consumismo sem freio), parapsicologia, hipnotismo, fenómenos sociais, ambiente e futuro do planeta, humanidade (e suas dimensões de alma, espírito, mente, emoções, corpo e vida), humanismo e outros, num desafio contínuo a ousar uma viagem ao imo de cada um, sem proselitismo nem autoritarismo nem pretensiosismos, que só a ignorância não assumida pode alimentar. Deu-se primazia ao diálogo, à tolerância, prudência e autenticidade.

É chegada a hora de se anunciar o lançamento desta «confissão» mútua e fraterna, na Biblioteca Municipal - Casa Mantero (R. Gomes de Amorim, 12 - 14, 2710-569 Sintra), no dia 25 de junho de 2022, às 16H00.
Se gosta de ler (e ousa ler-se), este Convite é para si.
Oportunamente se comunicarão pormenores e datas de lançamento em outros locais, onde os coautores têm raízes e buscaram inspiração.
Entrementes... deixamos este resumo em dois minutos e meio: 

11 de maio de 2022

o início de EMIGRANTES

«Preta e branca, preta e branca, o preto mui luzidio e muito níveo o branco, a pega, de cauda trémula, inquieta, saracoteava entre carumas e urgueiras, esconde aqui, surge ali, e por fim erguia voo até a copa alta do pinheiro, levando no bico ramo seco ou graveto.» Ferreira de Castro, Emigrantes [1928], 29.ª ed., Lisboa, Cavalo de Ferro, 2013, p. 13

2 de maio de 2022

o início de O SENTIDO DO FIM


«Lembro, sem nenhuma ordem definida:» Julian Barnes, O Sentido do Fim [2011], trad. Helena Cardoso, 12.ªed., Lisboa, Quetzal, 2020, p. 11.

 

4 de abril de 2022

Sobre O Sentido do Fim, de Julian Barnes.

Tive o primeiro contacto com a escrita de Julian Barnes em 1990 com A História do mundo em 10 capítulos e ½  e continuei depois a ler muitas das suas obras. Reli agora O Sentido do Fim num ápiceGostei das frases curtas, do humor algo cínico, da narrativa muitas vezes desconcertante e provocadora que nos faz pensar em nós próprios - interessa-me quando o escritor nos leva a essa viagem interior e de algum modo nos assusta. Levanta muitas questões sem resposta ou resposta difícil - as melhores questões. Não é um livro de leitura confortável.
O papel da memória na História ( com h grande ) e na nossa história ( com h pequeno ) é fulcral. A questão do envelhecimento e da importância do que não nos lembramos  também é relevante. Será que somos o que pensamos ser ? Que memórias construímos mais perto do fim ? Numa entrevista ao jornal Público, Barnes falou do que a memória faz com o tempo e o que tempo faz à memória.  E como lidar com o facto de não podermos mudar o passado e qual a nossa responsabilidade nele Na primeira página do livro encontramos ( é a minha tradução porque li o original, não sei as palavras exatas da tradução portuguesa): “o que acabamos por recordar, nem sempre é o que testemunhámos “ e na última página o livro termina com, “ Há acumulação. Há responsabilidade. E para além destas, há inquietação. Há uma grande inquietação ”. O que nos transporta à descrição deliciosa  das aulas de História no inicio “o facto de que necessitamos de saber a história do historiador para compreender a versão que nos é dada “ e do professor cujo “sistema de controle dependia em manter um grau suficiente mas não excessivo de tédio “.
 
O afastamento do sentir, algum desprezo pelas  emoções ( dito tão British) para evitar o sofrimento é também muito presente; achei magníficos os exemplos de quando o Tony recebe a noticia do suicídio de Finn e o pai lhe diz que lamenta e ele diverge para a calvície do pai e se seria hereditária. Ou das memórias de quando Tony acaba a relação com Verónica e acaba por se focar na cor e no perfil sorridente da rainha na lata das bolachas. Ou quando se sabe quem é a mãe do filho de Finn e a narrativa passa para o sal nos diferentes tipos de batatas fritas. No fundo evitar ser magoado, não ganhar nem perder e chamar a isso capacidade de sobrevivência. A questão da “soma versus multiplicação” ao longo da vida, se o carácter se desenvolve com o tempo como nas novelas.
 
Barnes insinua esta pergunta muitas vezespreferiam amar menos e sofrer menos ou amar mais e sofrer mais? Mas será que afinal podemos fazer essa escolha conscientemente? Outra pergunta sem resposta .
 
Agora que estou " em repouso " com chá de limão e mel, está ao meu lado O Homem do Casaco Vermelhoo último livro de Julian Barnes em que o protagonista é um médico ginecologista na Belle Époque em Paris.
 

Saudações a todos e até Maio.


Zélia Mugli

21 de março de 2022

VATES (6)


 


Não cantes o meu nome em pleno dia

não movas os seus ásperos motivos

sob a luz dolorosa sob o som

da alegria


Não movas o meu nome sob as tuas 

mãos molhadas do choro doutros dias

não retenhas as sílabas caídas

do meu nome da tua boca extinta


Não cantes o meu nome a primavera

já o ameaça hoje principia

a vida do meu nome não o cantes

com a tua alegria


Nota: Hoje Dia Mundial da Poesia entendi homenagear Gastão Cruz. Só com a nossa intuição poética ou em registo áudio voltaremos a ouvi-lo. Por ironia do "destino" o poeta voou no início desta primavera tão frágil para outras galáxias donde continuará a inspirar-nos com a sua tão necessária gramática. Este caderno de 72 é um "ensaio" sobre a "imagem da linguagem", da memória literária e da experiência colocando a poesia no mundo. Não é necessário dizer que William Blake assiste em fundo as estes poemas. A transformação é inerente a qualquer poesia e só assim existe novidade e renovação. Nesse campo, aqui há um importante trabalho ao nível da sintaxe e dos elos que prendem o poema nomeadamente na segunda estância que lançam o leitor na captação de sonoridades acrescidas e de uma nova leitura de poesia.                             




  





4 de março de 2022

o início de A GARÇA E A SERPENTE

 

«"Este Novembro de 1917 continua frio mas dourado.» Francisco Costa, A Garça e a Serpente [1943], 2.ª ed., Lisboa, Parceria A. M. pereira, 1945, p. 11.

28 de fevereiro de 2022

FRANCISCO COSTA E A REVISTA MODERNISTA "ATHENA"

Ainda estou na leitura da 1ª parte de A Garça e a Serpente. Aquele impagável Manuel da Cunha e Silva - nomeado chefe da contabilidade do Banco Nacional, preparado para resolver o grave problema das "falhas nos balancetes de depositantes" e, ao mesmo tempo, arguto polemista em torno de matérias de arte - ainda me não convenceu. Curioso é que Francisco Costa - um não modernista - tenha publicado oito sonetos no nº 5 da revista Athena de Fernando Pessoa. Aqui se reproduz a última das quatro páginas desses sonetos. 

15 de fevereiro de 2022

SETÚBAL

Oferta cultural em Setúbal, terra do grande Elmano Sadino.

Dois tópicos, entre vários dignos de nota:

– CASA DA CULTURA, espaço de actividades diversas onde decorre, até 27 de Março, uma exposição de trabalhos de ilustração tendo como tema a figura de João Paulo Cotrim.

(R. Detrás da Guarda, 28)

– CASA DAS IMAGENS, acervo documental, audiovisual e artístico doado por Lauro António  ao município.   

(R. da Velha Alfândega, 8)

Informação para os nossos leitores que queiram incluir algum destes pontos numa eventual passagem pela cidade.

= Fotos de 12-2-2022


13 de fevereiro de 2022

LOURDES CASTRO


 






                                                                  
                                                                    PLEXOS

                     
                                         Pudesse surpreender a sombra
                                         que o tempo faz
                                         na graça do teu lençol


                                         Pudesse surpreender a sombra
                                         do vento


                                         Sombra de mim
                                         quando dizes:
                                         sou a que vai a teu lado.




            Nota: poema de minha autoria publicado no sexto número da Revista Margem, Departamento de Cultura da Câmara Municipal do Funchal, Junho de 1997. Colaboraram neste número: João de Melo, João Medina, Rosa Alice Branco, Lídia Goes Ferreira, António Ribeiro Marques da Silva, Aurora da Conceição Arantes, Irene Lucília, Ãngela Caires, José de Sainz-Trueva,  Egito Gonçalves, Bernardete Falcão, José Salvador, Noémi Reis, Fátima Dionísio, Luís Rocha, Robert Andres. 
     
                                                          



   

7 de fevereiro de 2022

POEMA ou CANÇÃO... eis a questão

 
De vez em quando, somos surpreendidos pela excelência de um trabalho dedicado, que se revela útil, apelativo, agradável. Mesmo quem não morresse de amores pela poesia acabaria cativado.

Quer experimentar? Então deixe-se prender por esta coletânea organizada pela equipa responsável pela Biblioteca Escolar da Secundária de Amares (até o nome parece fadado...). Basta um clique na imagem, escolher um dos três grupos de poemas e ouça, ouça.

Que tal?

31 de janeiro de 2022

o início de O ÚLTIMO CAIS

 

«Diário de Bordo / "Saímos de Quelimane na canhoneira Mandovi, com direcção à ilha de Moçambique, no dia 4 de Setembro de 1879, pelo meio dia.» Helena Marques, O Último Cais (1992), Alfragide, Leya, 2009, p. 9.

21 de janeiro de 2022

VATES (5)


AOS VINDOUROS, SE OS HOUVER...

Vós que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem preçarios, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo; 

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

ALEXANDRE O' NEILL, De Ombro na Ombreira (1969)

Nota: O' Neill, uma poesia que vai do satírico ao elegíaco (lembremo-nos de "Seis poemas confiados à memória de Nora Mitrani", Poemas com Endereço, 1962), aqui com uma saborosa antevisão de tempos  marcados pelo imaginário do nuclear, da computação, do amor livre e da sociedade do lazer. Mais de meio século depois, que dizer das palavras do poeta?

20 de janeiro de 2022

VATES (4)

De ANTÓNIO GEDEÃO, da obra Linhas de Força (1967) - na qual se encontram "Poema do coração", "Poema para Galileo", "Poema da buganvília", "Catedral de Burgos", "Lição sobre a água" e outros poemas bem conhecidos -, esta "Carta aberta"  que é a enunciação de uma arte poética da poesia moderna:

CARTA ABERTA

Um homem progride, blindado e hirsuto
como um porco-espinho.
É o poeta no seu reduto
abrindo caminho.
Abrindo caminho com passos serenos
e clava na mão,
que as noites são grandes e os dias pequenos
nesta criação.

Esmagando as boninas, os cravos e os lírios,
cortando as carótidas às aves canoras.
Chegaram as horas
de acender os círios,
de velar as ninfas no estreito caixão,
de enterrar as frases e as vozes incautas,
de oferecer a Lua para os astronautas
e as rosas fragrantes à destilação. 

17 de janeiro de 2022

VATES (3)

ou sim, ou não...
... oh! sim, onam!  4

Doente da luxúria de estar só
e não amar ninguém, ou quase, choro.
Zumbem, zangados zangãos, zês de ouro
mortal, e o zumbido é um solidó

enervador de vocação. Filhó
nostálgica e pardusca que o decoro
ousou deixar na mesa, sobre o ouro
sagaz mas fútil da baixela, Avó

qualificado pelos ministérios,
um colar torre espada, por serviços
antigos e distintos, na gaveta

terceira do armário da saleta,
ruim vinagre da vinha dos mistérios,
onanizo, mesquinho, os meus feitiços. 

JOÃO PEDRO GRABATO DIAS, Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada (Lourenço Marques, 1970)

Nota: João Pedro Grabato Dias é pseudónimo de ANTÓNIO QUADROS pintor (1933-1994) que além daquele usou os nomes fictícios de Multimati Barnabé João e Frei Ioannes Garabatus. 

16 de janeiro de 2022

CASA DA LUZ, FUNCHAL

NO FUNCHAL - II

No Museu da Electricidade
a que chamam a Casa da Luz
quando ele entrou
com seus sapatos flamejantes
as lâmpadas eléctricas
acenderam todas:

Seu nome era Eucanaã.

ANA HATHERLY, Itinerários (2003)

Nota: Este "post" é dedicado ao nosso amigo Laurindo que em 26-12-2021 aqui deixou uma foto com o título "Lembro-me desses Natais" e depois, em comentário, aludiu à Casa da Luz da cidade do Funchal. Na obra cuja capa se reproduz, há, além deste, outros poemas relacionados explicitamente com a Madeira: "Na Ilha de Porto Santo", "Voando para a Ilha da Madeira" e "No Funchal - I". Poemas  como "O Dragoeiro", "À sombra dos jacarandás", "Num hotel de cinco estrelas I e II" e "Turismo sénior" também parecem derivar da viagem à região. 
No poema, os «sapatos flamejantes» de Eucanaã pertencem, naturalmente, ao poeta brasileiro Eucanaã Ferraz (Rio de Janeiro, 1961). 

15 de janeiro de 2022

VATES (2)

DANIEL FILIPE

Correu sob as minhas pálpebras a tua imagem
agora pedra definitiva. Abraçava-te
inteiro, movendo-te entre mesas, sorrindo
aparentemente impreparado às arestas do dia. Óculo

de aferir o silêncio da pátria. Caçador
de girassóis entre o cimento. Tudo
o que de súbito extravasou da urna
e se tornou um rio que descia a cidade
e se mantinha vivo, voz agora impune.

Voz lírica e vibrátil, êmbolo
de aço que tempera. As visitas
sabem agora não te encontrar em casa. A voz
calou o que o futuro lhe daria. O passado
é porém um disco permanente
rolando sobre a agulha.

O que fizeste dessa voz, ferramenta
incorrupta, é agora amianto.
Passa purificadora pelo fogo
entre o mecanismo dos relógios.

Algures arquivam uma ficha. Sabem
já não estares ao alcance. O que fica é firme.
O resto simples cinza aérea
que já nem faz sombra no vento.

Deslizam-me dos dedos velhas fotografias. Servem
de vez em quando para lembrar teus fatos. 

9 de Abril, 1964

EGITO GONÇALVES, O Fósforo na Palha (1970)

14 de janeiro de 2022

RUY BELO : A NOVA POESIA EM PORTUGAL


 

                    Em 78 procuravam-se novos rumos para a cultura portuguesa após uma década de notáveis experimentalismos. Retenho algumas ideias que bebi em "A Vida da Poesia" de Gastão Cruz : a) quando R.B. surge o discurso poético estava por definir-se quanto a direcções a tomar - a linha discursiva que vinha de Sena, Rosa ou Helder estava suspensa.; b) surge um tempo de desconstrução do discurso com o desmantelamento de esquemas lógicos e sintáticos; c) Ruy Belo opta pela reconstrução do discurso.

Na revista Raíz e Utopia que sai no Inverno daquele ano, cuja leitura recomendo vivamente, (  que tenta ocupar o hiato cultural com reflexões muito amplas) é publicado na secção de Poesia um inédito de Ruy Belo que renova tudo o que sabemos ou pensamos a propósito do poeta. Cuidava-se então, neste número, de uma "nova poesia em Portugal" pelas mãos de José Manuel Alexandre, de Manuel Cintra e Luis Miguel Nava. São textos longos, com versos muito longos e irregulares aonde se deixa correr a pena a quente sem preocupações de rima numa confluência temática "delirante".  Não sei que é feito desta nova poesia...

O inédito manuscrito de Ruy Belo intitula-se "Na Noite de Madrid"  (escrito na Póvoa de Varzim, à vista do mar, 10 horas da manhã do dia 29 de Dezembro de 1971). Chama-se a atenção para este texto por ser o passo seguinte a Homem de Palavras(s) transportando contudo todas as abordagens temáticas que conhecemos no poeta nomeadamente a problemática da exclusão do sujeito e do anonimato do outro que tão humanamente expôs nos seus poemas: "que jornal contaria a imensidão do nome/de quem como um insulto ali jazia?/que pensamentos próximos tivera?/e o que levaria ele nos bolsos?/Donde viria?sorriria?onde ia?".

Para concluir: Foi esta forma de expressão aquela que mais me atingiu e deixou possivelmente algumas marcas nos meus escritos e nos da minha geração nas entrelinhas de finais de 70 despoletando em nós alguma poesia política despertando-nos para várias realidades do país real que eramos e país sonhado que continuamos a ser por muitos anos.       

                         

                

13 de janeiro de 2022

VATES (1)

ALTA NO CHÃO

Alta no chão,
ainda há pouco erguida.
Agora lâmina, 
lenha penetrável,
ardente, cega.

Rastejante boca
que a língua me inunda.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, Nos Seus Olhos de Silêncio (1970).


8 de janeiro de 2022

"NO WAY OUT", de RUY BELO

Ontem, quando li na sessão parte do poema de Ruy Belo, não tinha presente o falecimento de SIDNEY POITIER (justamente na véspera, 6-1-2022), protagonista do filme evocado pelo poeta em Homem de Palavras[s]: No Way Out (1950), de Joseph L. Mankiewicz.  O actor representa o papel de um médico que presta tratamento hospitalar a um delinquente ferido, procedente de um problemático bairro de nome Beavar Canal. A sua intervenção não corre bem e é lançada sobre ele a falsa acusação de descurar intencionalmente os cuidados de saúde devidos ao ferido, por sinal branco e racista. Um filme sobre o ódio racial, dos mais fortes que Hollywood produziu. 

NO WAY OUT

Sei hoje que sou pequeno
e não é esse o meu menor mal
mas faço meus os problemas
da gente de Beavar Canal 

Nasci numa aldeia perdida
nestes caminhos de Portugal 
mas tanto tenho irmãos aqui
como os tenho em Beaver Canal

Eu a miséria da minha terra
contemplei-a ao natural 
enquanto vi no cinema
como se vive em Beaver Canal

Mais do que a pedra mais do que a árvore
o homem é para mim real
e tanto sofre a dois passos de mim
como sofre em Beaver Canal

Não há país que não seja meu
em qualquer parte morro pois sou mortal 
mas aproveito a força da rima
para dizer que a minha rua é Beaver Canal

Morra eu dividido aos quatro ventos 
seja o legado sentimental 
fique no mundo onde ficar 
deixo o meu coração a Beaver Canal


Ruy Belo, Homem de Palavra[s]