BAPTISMO
Cada anoitecer volto a ler as tuas cartas
que nunca me escreveste e guardo nas gavetas
transparentes para os ladrões não as encontrarem
- como observar o ar no ar, a luz na luz?
No interior do passado há muitos passados,
muitas memórias a ramificarem como
pequenos capilares do tempo. Lembrança
também é tudo aquilo que nunca chegámos
a viver, a ver e a dizer um ao outro,
tudo o que ficou levemente colado
ao coração, qual pestana prestes a voar.
Não é por estarem mortas antes de nascerem
que as almas já não são almas. Nem as palavras
palavras. Faltou-lhes apenas a água fria
do baptismo e alguém que acreditasse nelas.
Gemma Gorga (1968) em Resistir Ao Tempo - antologia de poesia catalã (edição bilingue)
Organização e tradução do catalão: Àlex Tarradellas, Rita Custódio e Sion Serra Lopes
Assírio & Alvim
1ª edição, Junho de 2021
Página 585
«Lembrança / também é tudo aquilo que nunca chegámos / a viver (,,,)». É poético, verdadeiro... e triste. Gostei.
ResponderEliminarDolorosamente belo.
ResponderEliminarDas poetas que mais gostei de ler e descobrir nesta antologia 🙂
ResponderEliminarProsa excelentíssima. Poesia???
ResponderEliminarNem sempre linear o que separa a prosa da poesia. Por vezes também dou por mim a sentir dúvidas 🙂
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