30 de abril de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - XIII

 

OS EPITÁFIOS – EPITÁFIO PARA UM DOS GRANDES DO MUNDO

 

Tapando a ouro as chagas e os agravos,

Lidou com seus irmãos como com bestas:

Das fêmeas comprou a carne,

Dos machos, a consciência e a vontade.

No ódio dos escravos

Perdurou sua memória.

De histórias como estas,

Não continua a história

Senão na Eternidade.

 

--- Filho do Homem, 1961


28 de abril de 2024

101 poemas portugueses - #36


O BALOIÇO


Na minha quinta, em pequeno,
Tive um inquieto baloiço
Que ainda o vejo sereno
E nele os meus gritos oiço.

Longas horas baloiçava
Meu frágil corpo menino.
E ora subia ou baixava
Num constante desatino.

Nesse baloiço, à distância,
Chama por mim minha infância
E eu chamo p'lo que passou.

E sem haver quem me oiça
O baloiço me baloiça
Entre o que fui e o que sou.



Alfredo Guisado  (Lisboa, 1891-1975) 
A Lenda do Rei Boneco (1920) / Líricas Portuguesas - 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

25 de abril de 2024

LIBERDADE !

 LIBERDADE



Do espaço que libertámos um dia

Surgiu límpido o teu nome liberto

Era um pássaro a destruir a noite

Era uma voz a perfurar o silêncio

Era um grito a romper o muro

Um punho fechado em rosa aberta


Habitar o Tempo, Vieira de Freitas, 1975

24 de abril de 2024

José Afonso, «Chamaram-me cigano»


Chamaram-me um dia cigano e maltês
Menino, não és boa rés abri uma covaNa terra mais funda fiz delaA minha sepultura entrei numa grutaMatei um tritão mas tiveO diabo na mão havia um comboioJá pronto a largar e viO diabo a tentar pedi-lhe um cruzadoFiquei logo ali num leitoDe penas dormi puseram-me a ferrosSoltaram o cão mas tive o diabo na mãoVoltei da charola de cilha e arnêsAmigo, vem cá outra vezSubi uma escada ganhei dinheiramaSenhor D fulano Marquês perdi na roletaGanhei ao gamão mas tiveO diabo na mão ao dar uma voltaCaí no lancil e veioO diabo a ganir nadavam piranhasNa lagoa escura tamanhasQue nunca tal vi limpei a viseiraPeguei no arpão mas tiveO diabo na mão


23 de abril de 2024

#25 poemas passados para português - #22


A mim o que me mata,

querido efebo, digo-te:

desejo sem prazer,

versos sem graça ou ritmo

e ceias só com chatos.


Arquíloco (, Jónia, Séc. VII a. C.)

in Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos (1972)

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - XII

 

O AMOR E A MORTE - MONÓLOGO A DOIS


Sábia talvez inconsciente,

Doseando, com volúpia, uma ancestral sofreguidão,

Ali onde o desejo mais me dói, mais exigente,

Me acaricia a tua mão.

 

De olhos fechados me abandono, ouvindo

Meu coração pulsar, meu sangue discorrer,

E, sob a tua mão, na asa do sonho, eis-me subindo

Àquele auge em que todo, em alma e corpo, vou morrer…

 

--- Filho do Homem, 1961


21 de abril de 2024

Pelo Tejo vai-se para o mundo (03)

 BAPTISMO

Cada anoitecer volto a ler as tuas cartas
que nunca me escreveste e guardo nas gavetas
transparentes para os ladrões não as encontrarem
- como observar o ar no ar, a luz na luz?
No interior do passado há muitos passados,
muitas memórias a ramificarem como
pequenos capilares do tempo. Lembrança
também é tudo aquilo que nunca chegámos
a viver, a ver e a dizer um ao outro,
tudo o que ficou levemente colado
ao coração, qual pestana prestes a voar.
Não é por estarem mortas antes de nascerem
que as almas já não são almas. Nem as palavras
palavras. Faltou-lhes apenas a água fria
do baptismo e alguém que acreditasse nelas.



Gemma Gorga (1968) em Resistir Ao Tempo - antologia de poesia catalã (edição bilingue)
Organização e tradução do catalão: Àlex Tarradellas, Rita Custódio e Sion Serra Lopes
Assírio & Alvim
1ª edição, Junho de 2021
Página 585

19 de abril de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - XI

 

O AMOR E A MORTE – POEMA

 

Crispou-se a minha mão sobre o teu sexo.

Fecharam-se-me os olhos sem querer…

De que abismos voava até ao fundo?

E a minha mão sondava

E triturava

Aquele mundo

Tão pequenino e tão complexo:

O teu mistério de mulher.

 

--- Filho do Homem, 1961


17 de abril de 2024

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XXIV

 

O PALÁCIO DA VENTURA


Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura,

Paladino do amor, busco anelante,

O palácio encantado da Ventura.


Mas já desmaio, exausto e vacilante,

Quebrada a espada já, rota a armadura...

E eis que súbito o avisto, fulgurante

Na sua pompa e aérea formosura!


Com grandes golpes, bato à porta e brado:

Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...

Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!


Abrem-se as portas d'ouro com fragor...

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão - e nada mais!


Antero de Quental, Sonetos



101 poemas portugueses - #35


QUASE


Um pouco mais de sol -- eu era brasa.

Um pouco mais de azul -- eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

 

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído

Num baixo mar enganador de espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho -- ó dor! -- quase vivido...

 

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim -- quase a expansão...

Mas na minh'alma tudo se derrama...

Entanto nada foi só ilusão!

 

De tudo houve um começo... e tudo errou...

-- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... --

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou...

 

Momentos de alma que desbaratei...

Templo aonde nunca pus um altar...

Rios que perdi sem os levar ao mar...

Ânsias que foram mas que não fixei...

 

Se me vagueio, encontro só indícios...

Ogivas para o sol -- vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios...

 

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...

 

...............................................................

...............................................................

 

Um pouco mais de sol -- e fora brasa,

Um pouco mais de azul -- e fora além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 - Paris, 1916),

Dispersão (1914)

14 de abril de 2024

101 poemas portugueses - #34


Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.

Fernando Pessoa (Lisboa, 1888-1935),
Álvaro de Campos -- Livro de Versos
(edição de Teresa Rita Lopes)

10 de abril de 2024

25 poemas passados para português - #21


TRABALHAR CANSA


Atravessar uma rua para fugir de casa

só um rapaz é que o faz, mas este homem que vagueia

todo o dia pelas ruas já não é um rapaz

e não está a fugir de casa.

                                             Há tardes

no verão em que até as praças ficam vazias, estendidas

sob o sol que está prestes a pôr-se, e este homem, vindo

por uma alameda de inúteis plantas, pára.

Vale a pena estar sozinho, para se estar cada vez mais sozinho?

Vaguear por elas apenas, as praças e as ruas

estão vazias. É preciso travar uma mulher

e falar com ela e convencê-la a viver a dois.

Ou então fica-se a falar sozinho. Daí que por vezes

haja o bêbedo nocturno que mete conversa,

e conta os projectos de uma vida inteira.


Não é certamente aguardando na praça deserta

que se encontra alguém, mas quem vagueia pelas ruas

detém-se por vezes. Se fossem dois,

mesmo a andar pela rua, a casa seria

onde está aquela mulher, e valeria a pena.

Volta a praça a ficar deserta à noite,

e este homem, que passa, não vê as casas

entre as luzes inúteis, já não ergue os olhos:

sente apenas a calçada, que outros homens fizeram

com mão endurecidas, como são as suas.

Não é justo ficar na praça deserta.

Andará com certeza pela rua a mulher

que, rogada, daria com gosto um jeito na casa.


Cesare Pavese (Santo Stefano Belbo, Piemonte, 1908 - Turim, 1950),

Trabalhar Cansa (1936)

Versão de Vasco Gato, Lisboa, 1978) 


 original

8 de abril de 2024

101 poemas portugueses - #33


AMOR-METEORO


Encontrei-a no cais, ao embarcar,
E, após um curto olhar retribuído,
Tão preso me senti, tão seduzido,
Que até como isto foi nem sei contar.

Só sei que agradeceu o meu olhar
Com outro mais gentil e enternecido,
E que fiquei em terra possuído
De um ódio torvo e estranho contra o mar.

Não mais em minha face inconsolável
Demorará seus olhos de veludo!
Não mais aquele instante inolvidável!

Um protesto de amor ardente e mudo,
Um sorriso, uma dor incomportável,
Um triste volver de olhos... e foi tudo.


Ed. Bramão de Almeida (1887-?), 
Maré Alta (1934)

5 de abril de 2024

o início de O MEU TIO DE NANTES

«Os ossos vão em caixinhas para Lisboa, para o Porto, para Coimbra.» Carlos Daniel, O Meu Tio de Nantes, Fundão e Amadora, Jornal do Fundão / Canto Redondo, 2023, p. 9.

4 de abril de 2024

25 poemas passados para português - #20


FIM DO MUNDO


Salvo sem pressa um

cristal de rocha, uma

medalha; salvo um verso

e uma pluma no ar;

um cheiro a pão,

uma janela sobre o nada

aberta de par em par.


Ángel Crespo (Alcolea de Calatrava, 1926 - Barcelona, 1995)

30 Poemas (1984)

versão de Eugénio de Andrade (Póvoa de Atalaia, Fundão, 1923 - Porto, 2005)

3 de abril de 2024

 O MEU TIO DE NANTES


"Nós íamos a pé para os aterros do rio e demorávamos mais de uma hora a chegar lá, troc, troc, por aquelas veredas abaixo e ele no seu cestinho de vime à cabeça da tia Teresa que já teria para aí uns dezoito ou dezanove anos (... ...) Depois pousava-o numa sombra, ou embrulhadinho em cobertores, no pino do inverno,  e quando ele chorava muito ela dizia-me assim: «Ó Gilda toma lá conta dele que tu és ainda muito pequenina para andares aqui com as perninhas dentro desta água tão fria o dia inteiro.» E às vezes era eu que ficava com ele ao colo. Eu acho que ele chorava de fome, coitadinho, e eu abanava-o, abanava-o até a tia Teresa ter outra vez um bocadinho de leite para ele mamar porque ela tinha muito pouco leite. Ó filho, quando hoje me lembro disto tudo até me parece que aquilo não pode ter acontecido: irmos três garotas, no pino do frio e do calor, para o Cabeço do Pião com uma merendita para o dia inteiro e a tia Teresa com aquela cestinha de vime à cabeça, com o Floriano lá dentro, que veio a casar com uma Palmira de Moncorvo e eram primos da Fernanda do Lúcio que trabalhava na Câmara do Barreiro e que o marido a deixou. E passávamos o dia inteiro a arear, a arear dentro do rio... e aquele menino à cabeça para trás e para diante.

Ai filho(...)"

(Pg. 79-80)


Este belíssimo livro, que se lê com gula e deleite, é assinado por Carlos Daniel. Contudo, podemos afirmar que a verdadeira autora é a Senhora sua Mãe, Dona Gilda, que em grande parte lho 'ditou', através de longos telefonemas ou em conversas dispersas ao longo da vida. A Carlos Daniel coube a meritória tarefa de, com talento e arte, converter os monólogos telefónicos e os pitorescos relatos da anciã em belíssimas peças de prosa.  

Um abraço de parabéns, Carlos Daniel. Antevejo uma sessão animada e enriquecedora, na qual, com muita pena minha, não poderei estar presente. 

F. Faria



1 de abril de 2024

101 POEMAS PORTUGUESES - #31


SONETO DA VISITAÇÃO


Vinde, adorai! Criados e parentes!
Tenho o presépio em nossa casa armado.
Vinde adorar o meu menino amado,
Honrá-lo com carinhos, com presentes!

Muito quietinho, nas roupinhas quentes,
O infante dorme, dorme aconchegado.
É lindo, pois não é? o meu morgado?
Que tu, Senhor, em graça mo aviventes!

E, de joelhos, com um ar de boda,
Adora e pasma-se a assistência toda,
Como diante dum festivo altar.

Que perfeição! Que enlevo de criança!
-- E pedem num louvor que não descansa
Que Deus nos dê saúde p'ra o criar.

António Sardinha (Monforte, 1887 - Elvas, 1925)
A Epopeia da Planície (1915) /
/ Líricas Portuguesas - 2.ºªSérie
(edição de Cabral do Nascimento)